sexta-feira, maio 25, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #11



Homem, depoimento
Depois de tudo o que aconteceu tive que me habituar a conviver com a dor de a ter deixado partir. Não é suposto desvanecerem-se as memórias com o passar do tempo? Pois comigo dá-se o contrário. Recordo cada vez melhor, de forma mais nítida, cada conversa, cada riso, cada beijo. Consigo reconstituir de cor dias inteiros que passámos juntos, como se assistisse a um filme. Depois as saudades são tão intensas que o meu único desejo é que ela se vá embora de vez, que abandone também as minhas memórias. Sinto-me enlouquecer. Dizem-me para esquecer, que ela não é real, nem nunca o foi. Ou então dizem-me que ela morreu, o que é claramente um contra senso, se nunca existiu não pode ter morrido.

A explicação oficial considerou-me a primeira vítima do “efeito corrosivo de uma psicopata com capacidade para hipnotizar multidões, uma criminosa que sucumbiu pelas próprias mãos encerrando da forma mais terrível todo um ciclo de violência e morte”. E depois todos se empenharam no esquecimento, porque aquilo que não é lembrado não existe. Nenhum corpo foi alguma vez encontrado, mas sobre isso, nem uma palavra. Nem uma referência aos milhares de pessoas que encontraram naqueles concertos a felicidade, o prazer, a alegria, o amor, a amizade. Também não me parece justo, ela fez bem a muita gente… Mas também isso foi esquecido. E no entanto, como é que alguém, ou algo, que não existe, deixa uma dor tão real como aquela que sinto? Uma dor que parece ser imortal. Ninguém compreende que para mim isto não pode ficar assim. Eva Nascente existiu, existe ainda, tem que existir, porque se não for assim, então estive sempre sozinho.

Quanto mais olho à minha volta menos me identifico com este mundo que sempre foi o meu. A minha essência já não parece ser a mesma. Não é do mundo da lógica, das certezas, da realidade empírica e das experiências científicas esta sensação de que ela não chegou a ir-se embora, de que a sua presença ainda se faz sentir. A mecânica quântica não explica mas não é menos verdadeira por isso, esta ligação entre dois mundos, que teimosamente persiste e resiste a todas as adversidades, até ao próprio tempo. Já não falo destas coisas a ninguém, sempre que o faço vejo crescer nos olhos dos outros a convicção de que estou louco. Louco ou não, vou-me redimindo dos meus erros escrevendo as letras para as canções que poderíamos compor juntos se a história tivesse sido outra. Nestas novas canções já não falo de traição ou de mágoa. Apenas digo, Eva, sei que existes, só existindo podes cantar como cantas. É verdade, quase me esquecia de mencionar este pormenor, meio delirante. É que a oiço cantar com cada vez mais frequência e não duvido, nem por um instante, que é ela a cantar só para mim. Sinto que mudei, já não sou o mesmo. Pressinto que alguma coisa boa está ainda por suceder. E desta vez não vou ter medo de me deixar encantar.

Fim de publicação

terça-feira, maio 22, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #10



Eva Nascente, depoimento
Os humanos falam às vezes da Fénix, a ave mitológica que nasce das próprias cinzas e que, é claro, não existe. Será assim tão difícil aos homens entenderem que todos eles, em cada dia, a cada momento, nascem de novo, que não há apenas uma vida ou uma morte na vida mas várias, que sobre as cinzas de um fim se está constantemente nascendo de novo? Que a Fénix existe em cada um de nós? Foi isso que se passou comigo, afinal. Vi os meus planos caírem por terra e o meu amor ser desprezado. Vi desabar o mundo que criei. Vi esgotarem-se a curiosidade, a euforia, o deslumbramento, a paixão, a esperança, a teimosia, a ilusão. Fui até onde podia ir, até que fiquei sem forças. E nessa altura precisei de recuperar a minha essência, aquela de que julguei não precisar mais. Abandonar o mundo dos homens foi a melhor coisa, a única coisa a fazer. A esse gesto os homens chamaram de morte, eu insisto em chamar-lhe renascimento. Precisei de regressar ao que sempre fui e serei, para novamente me afirmar Eva Nascente. Não sou de facto a mesma que se juntou a um grupo de músicos, por amor à aventura, por amor. Sou outra, porque noutra me tornei em resultado de todas as vivências e sentimentos. Outra, recomeçada sobre as cinzas de mim, porém a mesma, porém outra. As diferenças são fáceis de encontrar. Olho mas o meu modo de olhar é diferente, acredito, mas já não acredito no mesmo, ignoro muita coisa, mas já não posso ignorar de novo aquilo que passei a saber. No fundo, acho que é a isto que os homens chamam de “pecado original”.

E no entanto, algumas coisas parecem teimar em prevalecer. Como o meu amor por ele, que decidi não ignorar. Esse erro pertence-lhe a ele, não a mim. E é por isso que de vez em quando vou visitá-lo, sem que no entanto me deixe ver. Já não quero renegar o mundo a que pertenço em nome do amor que sinto. Mas permito-me ainda imaginar que o nosso reencontro poderá acontecer de novo, um dia. Quando for a vez dele renascer das cinzas, e puder acreditar que eu existo. Talvez aconteça em breve, vejo que também ele está a mudar. É com toda a ternura que às vezes me chego bem perto e lhe sussurro, meu amor, se me quiseres de volta, se me procurares, assim me terás. Estou perdida apenas para me deixar encontrar.

Próxima (e última) publicação: 25 de Maio

quinta-feira, maio 17, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #9



Homem, depoimento
O desaparecimento dela foi ainda mais insólito que o aparecimento. Não sei explicar para além do que vi acontecer, foi precisamente no último concerto da digressão. Da parte dela não houve um sinal, um olhar, um sorriso. Não houve nada, aliás, a partir de certa altura a Eva pareceu desistir de mim, e a mim pareceu-me que isso me agradava. Naquela noite como em tantas outras estava apenas concentrado no espectáculo, contente porque depois daquele concerto podia dissolver a banda e esquecer tudo. Cumprindo o alinhamento, fiz soar os acordes de um dos nossos maiores êxitos. Aquela canção já tinha alguma má fama, porque era tão potente, tão brutal, que quase sempre os maiores excessos do público aconteciam nesta fase da actuação. E assim foi novamente. Os seguranças entre o palco e as grades pareciam frágeis para a enorme massa humana que se agitava em frente a nós. Noutros concertos, por várias vezes tinha sentido medo enquanto tocávamos aquele tema, mas naquela noite o medo dissipou-se. Eva parecia maior do que era na realidade, parecia elevar-se sobre o público enquanto cantava, o seu domínio era total. Perto do final da música juro que os seus pés se ergueram do chão, os braços abertos como se abraçasse todo o público. Todos sentimos que alguma coisa estava para acontecer. Parámos de tocar mas ela continuou a cantar. E sem qualquer hesitação, Eva lançou-se em voo sobre a assistência, a minha Eva Nascente, como gostava de se denominar, mergulhou naquela confusão de pernas, braços e rostos, naquela enorme massa humana, disforme por conta das emoções, dos encantamentos, da música. Deixou-se cair bem no fundo de todos eles, para longe de mim, para não voltar mais. No meio do caos que se seguiu, enquanto polícias e membros da equipa lutavam desesperados para afastar o público do local onde ela tinha mergulhado, deixei-me ficar sozinho em cima do palco, ouvindo apenas o silêncio que naquela hora se abateu no fundo de mim. Calaram-se a cólera, a revolta, o orgulho, a incompreensão. Soube desde logo, com toda a segurança, que podiam passar o recinto a pente fino, jamais a encontrariam. Estava perdida para sempre, e eu estava sozinho.

Próxima publicação: 22 de Maio

terça-feira, maio 15, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #8



Eva Nascente, depoimento
A minha maior ilusão foi acreditar na existência de um lugar, um tempo, em que pudéssemos estar juntos. Por isso me mantive ao seu lado, esperando que todo aquele ressentimento e preconceito cedessem, mais tarde ou mais cedo, ao amor que ainda existia. Quem disse que não há magia no mundo dos humanos? Querem maior encantamento do que a esperança? Deixei-me dominar por esse encantamento, e ingenuamente comecei a tentar convencê-lo a partir comigo. Afinal, se eu me tornara um pouco mais humana, porque não poderia ele ser um pouco mais… mágico? Como desejei então ter todo o poder que os homens atribuem às fadas! Conseguir mudar, por força da magia e para o bem dos dois, o seu modo de pensar, agir, sentir. Mas depressa me desiludi. A todas as minhas propostas de começarmos do zero algures onde nós próprios fôssemos mais importantes do que as nossas diferenças, ele respondia-me com palavras amargas, cheias de escuridão. Ou então fazia pior, não me olhava de frente, oferecia-me o mais frio dos desprezos, gelava-me por dentro. Entendi que mais uma vez procurava sucesso numa missão impossível. Afinal, se ao longo de todo este caminho eu nunca pude modificar a minha própria essência, como poderia ser capaz de modificar a dele? Ele optou por duvidar da minha existência. A mim só me restou duvidar do seu amor. E dando esse amor por inexistente, já nada mais havia para mim no mundo dos homens. Tudo o que restou fui eu própria, ainda que perdida no meio de muitas ilusões. O cansaço tomou conta de mim e apenas uma ideia começou a orientar-me: regressar a casa.

Próxima publicação: 17 de Maio

quinta-feira, maio 10, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #7



Homem, depoimento
Realmente vivemos num mundo estranho. Enredamo-nos tanto nos nossos compromissos que eles ganham mais importância que a nossa própria vontade, impondo-se sem direito a contestação sobre as necessidades mais básicas, humildemente suplicadas pelos nossos corações. Só por isso se explica que, mesmo depois de tudo o que descobri e decidi, não tivesse dissolvido a banda de imediato. A verdade é que, mesmo com todos os problemas que surgiam, não podíamos cancelar os concertos. Também por conta destes problemas, a banda estava no auge do sucesso e havia contratos a cumprir.

Continuámos a tocar, mas as actuações eram cada vez mais curtas porque se tornava impossível controlar a multidão. O meu afastamento dela também se reflectiu na música e da pior forma possível. Eu ficava furioso, acreditava piamente que ela fazia de propósito para deprimir as pessoas. Eva cantava com uma melancolia na voz que nos trespassava os ossos. Vi muitas vezes os músicos a chorar enquanto tocavam, mesmo no meio das músicas mais agitadas, e sem conseguirem compreender porquê. As reacções do público também se alteraram, e se por um lado diminuíram os desacatos e tentativas de assassinato, a taxa de suicídios durante e depois dos concertos começou a aumentar de forma assustadora. Em consequência disso surgiram aquelas organizações de pais, que reclamavam pelo nosso silêncio total enquanto músicos. Nem que para isso tivessem que nos matar...

Por essa altura, vários jornalistas, comentadores, apresentadores de televisão, despertaram para a mesma pergunta que eu próprio tinha feito: quem é esta Eva, de onde surgiu? É claro que não posso afirmar isto como verdade rigorosa, mas sempre suspeitei que a minha descoberta da verdade se assemelhou à bola de neve que cai do cimo do penhasco. Vem rebolando por aí abaixo, recrutando outras iguais a ela, e tornando-se cada vez maior. Fui apenas o primeiro a fazer a pergunta, e ao fazê-la quebrei o encanto que abriu outros olhos. Começaram a surgir más referências à nossa banda um pouco por toda a imprensa. As críticas nos jornais e revistas, de apoteóticas passaram a demolidoras. Acredito que alguns desses críticos tenham ficado desencantados, tal como eu. Outros, se calhar, pura e simplesmente eram feitos de uma matéria que não se deixava encantar, e apenas permaneciam calados à espera do momento oportuno para se fazerem ouvir. Da Eva disseram-se coisas terríveis. A sua beleza, que em boa verdade sempre foi impossível de contestar, passou a ser escamoteada em todas as revistas. Aliás, foi numa dessas revistas cor-de-rosa que primeiro surgiu aquele comentário venenoso, em letras pequeninas, ilustrando uma foto: “parece uma bruxinha”. Aquela legenda, não sei como, tornou-se na ideia dominante, e logo foi veiculada a ideia de que aqueles olhos doces eram apenas a máscara que escondia todo o mal. Juro que nunca a denunciei, esse peso não carrego na minha consciência. Mas identificava-me totalmente com tudo o que dissesse mal dela, mesmo que com isso também eu e a banda surgíssemos prejudicados. Tinha um prazer sórdido em mostrar-lhe todas as críticas e às vezes inventava outras, ainda mais ofensivas. Menti dizendo-lhe que já não a amava, agora que sabia a verdade. Que as suas mentiras estavam à vista de todos. Que todo o seu mundo era uma fraude que não existe e nunca existiu. Mascarei assim o que sentia, defendi-me como podia, não dela, que jamais me quis fazer mal, mas da dor mais destruidora de todas, a de nos sentirmos traídos por quem amamos.

Próxima publicação: 15 de Maio

terça-feira, maio 08, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #6



Homem, depoimento
A cada pergunta minha surgiram verdades que me esmagaram. À medida que me dava conta do seu mundo de encantamentos e magia, eu pelo contrário descia cada vez mais à terra e compreendia como a nossa história era impossível. Não tenho dúvidas hoje em dia que começou naquela conversa o fim do seu encantamento sobre todos nós. Quanto a mim, descobrir a verdade foi revoltar-me com ela. Continuo a não saber dizer quem, ou o que é ela realmente. Apenas lamento que não tenha conseguido deixar-me estar como estava, sem ter que a encerrar numa definição. Mas não fui capaz, afinal sou apenas humano. Precisei ali mesmo de encontrar um nome para lhe chamar, ou fada ou bruxa, e bruxa foi a minha escolha. Decidi naquele momento que o que sentia não era amor, mas feitiço. E assim com tudo explicado e devidamente encaixado nos seus lugares, apenas quis parar de sofrer. Encerrei a discussão dizendo-lhe o pior de tudo, já não existes para mim.

Eva Nascente, depoimento
A rejeição ditou o fim do meu encantamento. Não aquele que se soltava durante os concertos, porque esse, como já expliquei, foi involuntário, imprevisível, diferente conforme os corações que o recebiam. Refiro-me ao encantamento em que eu própria andei envolvida, esquecendo-me da minha essência e julgando poder assim viver feliz. Não se pode nunca renegar a matéria de que somos feitos, foi essa a lição que tirei a duras penas. E no entanto, um dos meus desejos continuava a ser satisfeito: o de aprender a ser humana. Neste meu aprendizado pude então conhecer o outro lado desta forma de existência, pela mão do mesmo homem que me dera a conhecer o amor. Em vez de paixão, desprezo. Em vez de comunhão, solidão. Pela primeira vez em muito tempo recordei o mundo que é o meu com saudade, outro sentimento que aprendi a conhecer. O problema é que também nesse mundo me sentia agora uma estranha. Ficou então claro para mim que pelos meus próprios passos me tornara numa estranha entre ambos os mundos.
Próxima publicação: 10 de Maio

quinta-feira, maio 03, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #5



Homem, depoimento
Os nossos concertos tornaram-se cada vez mais policiados, numa tentativa às vezes vã de controlar o incontrolável. Chegava a ser cómico, dir-se-ia que havia tantos polícias quanto espectadores. O bizarro é que, muitas vezes, os próprios agentes se deixavam contagiar por aqueles fenómenos de histeria colectiva, e com a agravante de estarem armados. Foi muito bem abafado aquele episódio do polícia que atingiu a tiro vários casais de espectadores, apenas porque estavam a beijar-se. Outra coisa que me incomodava um pouco é que o resto da banda parecia divertir-se, não se deixando impressionar com as tragédias que por vezes aconteciam entre a assistência. O nosso baterista deixou de consumir droga antes dos concertos. Também deixou de se embebedar a seguir. Dizia que já não precisava, a música que tocávamos era suficiente. A Eva estava cada dia mais resplandecente, uma verdadeira deusa, especialmente quando sorria para mim. Era quase sempre impossível não me perder nesse sorriso, deixar-me levar pela onda de bem-estar que ela me provocava.

Mas tornou-se impossível permanecer de olhos e ouvidos fechados, quando chegavam cada vez mais informações sobre gente que morria no meio daquele caos. Surgiram os primeiros concertos cancelados, e as sombras começaram a tomar conta do nosso paraíso. Mesmo assim precisei de tempo para lhe fazer directamente a pergunta que me consumiu durante algum tempo, quem és tu afinal. Está enganado quem pensa que precisei de ganhar coragem para perguntar. Tal como alguém já disse em tempos, do que eu precisei foi de coragem para ouvir a resposta.

Eva Nascente, depoimento
Perguntou-me quem eu sou, pergunta mais simples parece não haver, se bem que mesmo os homens nunca têm apenas uma resposta para ela. Respondi-lhe com a verdade. Sou uma das muitas realidades deste mundo, sou a vontade de ser mais do que aquilo que estou destinada a ser, sou o desejo de aprender, sou a mulher que nasceu do teu amor, aquela que acordaste por dentro, aquela que te acordou por dentro, sou a tua inspiração. Sou corpo e espírito, tal como tu. Mas o meu corpo e espírito é feito do que julgas não existir, e te habituaste a ver apenas em sonhos, e a chamar-me fada, ou bruxa, feiticeira, duende, extra-terrestre. A minha verdade é esta, foi esta que lhe entreguei. E também eu perguntei: homem, qual vai ser a tua verdade? No que é que te vais tornar, agora que sabes quem sou?

Senti o abismo que se abria entre nós à medida que as minhas respostas apenas geravam mais interrogações. Percebi então o quanto estava longe da existência humana, que julgava ter alcançado tão facilmente. Afinal, os nossos sentimentos eram a base que sustentava uma realidade tão frágil que a qualquer momento poderia desfazer-se. Tive medo, senti o chão a fugir-me dos pés. Se também ele, como a maior parte dos homens, concluísse que eu não existo, como poderia eu, de facto, existir.

Próxima publicação: 8 de Maio