segunda-feira, julho 09, 2012

Estrudes Luísa

As vinhas dão trabalho o ano inteiro. É preciso podar, depois empar, curar, vindimar. Lavar os cestos. Pisar as uvas. Fazer o vinho. Lançam-se as sementes à terra e brotam as batatas, o trigo, as favas. Quem olhar com atenção vê que o trabalho também brota da terra, não é coisa que se coma ou beba, mas pensando bem, sem trabalho não há o que comer, e isto é verdade em todos os tempos do mundo. Quem não tem terras precisa de trabalhar, quem as tem precisa de quem as trabalhe. Mas em Agosto não há trabalho, só há calor.

Já é fim de tarde mas o calor continua opressivo, doentio, o ar irrespirável. A estrada é comprida e é só uma, atravessa a aldeia de ponta a ponta, a casa é das primeiras e já se vê ao longe, mas lá em cima. Demasiado lá em cima para o calor que está. A Estrudes regressa a casa pela rua deserta, portas e janelas fechadas. Todos os que a isso se podem permitir esperam que o estio dê uma trégua para então saírem.

Quanto a ela, não tem esse privilégio. A sua condição de viúva vestiu-a de negro desde os trinta, já lá vão três anos. É a conta que Deus fez. Talvez por isso seja também em número de três os filhos que lhe ficaram, mais a mãe, todos por esta hora à espera dela. O mais velho só tem seis anos. Há também a menina e o filho mais novo, tão pequeno ainda, tão pequenos todos.

O marido morreu a trabalhar, atropelado pelo carro de bois que comandava. Donde se conclui que o trabalho não dá só do que comer, também dá do que morrer. Neste início de século vinte, num sítio em Portugal que mais tarde alguns letrados poderão chamar de profundo, a Estrudes recebeu de indemnização, pela morte do marido, o facto de poder contar apenas consigo própria para sobreviver e cumprir a sua obrigação de criar três filhos e sustentar a mãe.

É claro que ninguém se chama Estrudes, o nome certo é Gertrudes. É o modo de falar das gentes que lhe abrevia a pronúncia. E por misteriosa decisão da progenitora, a Gertrudes tem outro nome, é Gertrudes Luísa. Não deixa de ser coisa estranha dois nomes assim reunidos. Se o primeiro se percebe no meio rural que reconhecemos pela paisagem em volta, de onde teria vindo a Luísa, nome de gente distinta, a destoar em tudo nesta mulher? Luísa pressupõe certa fineza nas mãos, no rosto e nos modos. Não é nome para camponesa. Apetece ir bater ao postigo daquela casinha, tão pequena, como pode viver lá tanta gente, diga lá minha senhora, como é que se lembrou de juntar a Luísa à Estrudes? Provavelmente a resposta seria igual à de tantas mães pelo mundo fora, porque sim, porque gostei, porque olhei para ela e foi o nome que Deus me segredou. Se quisermos especular, fantasiar, podemos inventar uma resposta mais poética: Estrudes Luísa porque se o destino de Estrudes já ela o tinha por garantido, ao menos que no nome houvesse a esperança de um dia ela poder ter outro, um destino de Luísa, quem sabe. E simplificando, reconheçamos apenas que soa bem.

Satisfeita a curiosidade onomástica, voltemos para o calor da rua. Mais forte que ele parece ser a Estrudes, que caminha a passo seguro, direita a casa. Já não é tempo de moças que vão formosas e não seguras. Com uma vida tão dura, trinta e poucos anos já chegaram para que se perdesse a mocidade e a formosura da Estrudes Luísa. Os passos são porém seguros. Quando se fica viúva e com três filhos para criar perde-se o direito à fragilidade. Qualquer Luísa teria que deixar de o ser, esta não foi excepção. Ficou somente a Estrudes para trabalhar no campo, na casa, no que houver, porque o trabalho é que não pode faltar. A Estrudes não chora a morte do marido porque isso não dá de comer a ninguém, não se lamenta por estar condenada à solidão ainda tão jovem, estas questões não são deste tempo. A Estrudes não fraqueja nem permite que o desespero tome conta dela. Não se engana nas contas embora não saiba ler nem escrever, paga sempre tudo o que deve. A Estrudes já anda meia curvada, pela dureza do trabalho e pela dor de tudo o que lhe aconteceu. O seu semblante endureceu, a falta de afecto vai acabar por secá-la por dentro, mas isso não é culpa de ninguém, nem sequer dela própria, e o seu passo é seguro, porque não pode ser outro.

Algumas vezes à noite, quando todos dormem espalhados pelas três divisões da casa, a Luísa que há na Estrudes sente saudades e dá-se ao luxo de chorar, perguntando-se por que razão tem o seu caminho que ser tão difícil. Nesses momentos suspira por uma vida mais fácil e deseja, com todas as suas forças, que ao menos uma única vez, em alguma pequena coisa, a vida se limitasse a exalar o perfume da rosa e deixasse os espinhos para outros que não ela.

Neste Agosto em que não há trabalho o desespero está cada vez mais difícil de controlar. Dia após dia temo-la visto sair de manhã, ainda com a ilusão do ar fresco que depressa se desvanece, indo a cada dia um pouco mais longe, à procura do sustento que não surgiu em lado nenhum. Já perdeu a conta aos dias em que regressou a casa, tal como a estamos a ver agora, todas as expectativas frustradas. E o desespero, na maior parte do tempo tão bem domado no fundo de si própria, a cada regresso tem vindo a ganhar novas forças, tornando-se lentamente numa besta abominável, apenas à espera que a última amarra se solte para irromper e tomar conta de tudo.

Uma proposta de casamento surgiu recentemente e aguarda resposta. Também viúvo, também com dois filhos pequenos, quem é mãe de três pode ser mãe de cinco, este homem é dos que têm terras para dar trabalho aos outros. Curiosamente, agora que as suas preces foram finalmente atendidas e o caminho mais fácil se perfila à sua frente, a resposta da Estrudes tem tardado a ser dada. Não estás cansada de enfrentar o mundo inteiro sozinha, três anos já não te chegam? Por quanto tempo vais tu conseguir criá-los assim, não seria melhor se? Estas palavras são da sua mãe, são de si própria nas noites que já conhecemos, e a resposta parece óbvia. Mas estranhamente, o desespero parece encontrar na figura deste homem novos meios para se agigantar ainda mais dentro dela. Nos últimos tempos, e a cada regresso a casa sem trabalho, a possibilidade do casamento foi ganhando diferentes contornos. A cada dia que passa, parece ser a única forma possível de continuar a dar alimento aos filhos. Mais do que o caminho para uma nova vida, esta proposta é uma questão de sobrevivência.

Este caminho será certamente o mais fácil, mas onde está, que é feito do perfume da rosa, por que motivo não se faz ele sentir? Em tudo isto pensa a Estrudes de noite. No dia seguinte, cada vez mais cedo porque é preciso ir cada vez mais longe, nova tentativa para encontrar trabalho, que o desespero ainda não reina, embora falte pouco.

Foi com todo este peso que saiu de casa hoje de manhã. Nunca a Estrudes fez tanto jus ao seu nome. Curvada perante o inevitável, há vários dias que já entendeu como é inútil esta busca pelo trabalho que não há. Mesmo assim voltou a sair, levou o seu desespero a passear, quanto à esperança, já há mais de uma semana que desistiu de a acompanhar. Cada vez mais próxima de uma decisão que dará alimento aos seus filhos, como que por castigo a lembrança do marido morto tem-se tornado cada vez mais forte e acompanha-a sempre no seu caminho. Calcorreou os lugares, bateu a todas as portas. Já nem se sentia reagir quando a resposta vinha, sempre a mesma, sempre igual. E tal era o seu estado de resignação que nem se deu conta, ao princípio, quando por uma única vez a resposta não foi a mesma de sempre. Hoje, no dia em que a vemos, a Estrudes arranjou trabalho.

Quem a vir agora a subir a estrada, direita a casa, vê uma mulher precocemente velha dobrada pelo peso da trouxa de roupa que trouxe para lavar. Mas quem como nós teve o privilégio de a poder acompanhar, sabe bem que a Estrudes trouxe um fardo de roupa pesado mas deixou ficar para trás outros tantos fardos que lhe pesavam muito mais.

O trabalho que, de forma indiferente, aquela outra mulher lhe pôs nos braços, devolveu à Estrudes o nome que lhe andava a faltar. Esta Estrudes que aqui vai hoje leva a cabeça erguida e mais firmeza no andar, está inteira, é a Estrudes Luísa. Não é Luísa por ser fina ou rica, isso nunca poderá vir a ser. É Luísa porque é dona de si própria, leva consigo a dignidade de quem se sustenta a trabalhar. Esta Estrudes Luísa desprezou o caminho mais fácil. Encarou o mais difícil e teve a coragem de perceber que só este lhe convinha. Que só por aquele caminho poderia continuar a trazer os seus dois nomes consigo. E que lhe assentam na perfeição, façamos a justa vénia a quem a baptizou.

Ali vai ela direita a casa, com o trabalho que foi possível encontrar hoje, melhores dias virão, piores dias virão. Hoje e até que morra, não haverá outra forma de levar a vida. A sua decisão só pode ser uma, e por incrível que pareça no meio de tanto calor, parece levantar-se uma brisa com um ligeiro perfume de rosas.

O pedido de casamento foi recusado naquele mesmo dia, para todo o sempre.