terça-feira, outubro 09, 2012

Elisa, filha de ninguém #5/7

Os pensamentos, os sentimentos, a maior parte dos que o assaltam são terríveis. Pensa em como estão agora fechadas para sempre as portas do Paraíso, pensa que não há no mundo inteiro perdão para um crime tão medonho, e as mãos tremem-lhe enquanto enrola o corpo num lençol, enquanto pega na enxada que será a sua única companhia em tão triste empreitada, pobre homem que assim exerce o seu papel de pai, a absolvição da filha leva-o à própria condenação. A noite permanecia silenciosa e escura, porém já não por muito mais tempo. Quando pôs o pé na rua todos os seus pensamentos se dirigiram para o terreno que ficava atrás da casa, perto o suficiente para chegar lá em dez minutos, longe o suficiente para afastar de vez este horror, este horror, tomara já que acabe para que enfim possa sentar-me e chorar. Assim pensava Manuel quando chegou ao sítio destinado, o suor escorrendo no rosto, se alguém decide madrugar e passar por estas bandas, que vai ser de mim, denunciam-me à polícia, amanhã já me estão a bater à porta, prendem-me para o resto da vida. O tempo urge, já o dissemos, e não é esta a altura mais própria para grandes considerações teóricas sobre o bem e o mal. Se a decisão está tomada há que pô-la em prática, deixemos os remorsos para quando for o tempo deles.

Porém já vimos que não será assim. Ao mesmo tempo que trabalham as mãos, são muitas e nefastas as considerações que aquela cabeça vai congeminando sozinha. Dir-se-ia até que se dividiu em dois, para um lado aquele que toma as decisões práticas, vamos por ali, naquele lugar o terreno é macio, vai ser mais fácil abrir o buraco, já está o corpo lá dentro, agora é só tapar. Para o outro lado, como pode isto ser, que estou eu a fazer, deitei-me esta noite e tudo era igual a todos os dias, ainda o dia não rompeu e estou a enterrar uma neta, que vai ser de nós todos se isto se sabe, pobre criança que não tem culpa de nada, a esta não se negará o Senhor a receber nos seus braços, e daí nunca se sabe, nem baptizada foi, não tem nome, o Padre diz sempre que quem não for baptizado não entra no reino dos Céus, oxalá tenham pena desta, senão até essa culpa terei que carregar daqui para a frente, a de ficar uma recém-nascida abandonada às portas do Céu, ao Deus-dará, e que estranho tudo isto me parece, acho que estou a ficar louco.

Enterrada a Elisa, Manuel respirou fundo e tentou pôr em ordem os seus pensamentos, a dura tarefa estava concluída. E no entanto prevalecia um sinal de alarme, uma inquietação incipiente mas persistente, o que foi, está terminado, deixem-me em paz um momento, isto dizia Manuel aos seus pensamentos, que em verdade se diga, quando eles são muitos ao ponto de nos encherem a cabeça, o barulho pode ser de tal forma ensurdecedor que nem conseguimos pensar nada que preste. Sentado no chão fechou os olhos, respirou fundo. Vou para casa, foi o que pensou, mas quando abriu os olhos o alarme que antes apenas se insinuara disparou como se fossem trombetas nos seus ouvidos, já antes tinha olhado mas só agora via, as máquinas estavam a postos para arar o terreno, foram ontem postas a jeito pelos homens que hoje irão manobrá-las, este terreno é de cultivo, mal o sol nasça vão rasgar a terra, abrir os sulcos e lançar as sementes, desta terra irão nascer coisas vivas, mas antes que para isso haja tempo irão pôr a descoberto o corpo de uma recém-nascida que, enterrado às pressas há apenas umas horas não ficou a mais de três palmos, se ali ficar não faltará muito tempo para que, mesmo morto, aquele corpo diga a quem quiser ouvir, aqui estou.

Esta noite é de pesadelo e parece não ter fim. Se permanecer onde está, a pequena Elisa estará em breve à vista de todos. O sol já não demora muito a nascer e com ele virão os homens. Mais uma vez foram os pensamentos práticos que tomaram conta de tudo, que deram a ordem ao braço, pega na enxada outra vez, e o braço obedeceu, num frenesim o braço e a enxada recomeçaram o seu trabalho para desenterrar o que ainda agora foi enterrado, o suor misturado com as lágrimas, o estômago apertado numa náusea que logo toma conta do corpo todo, e a outra parte, perguntarão os mais curiosos, a parte dos inúmeros pensamentos que giram descontrolados, bom, se estão descontrolados e são inúmeros, já nem vale a pena tentar descortiná-los, a não ser talvez este enorme terror de ser apanhado. Coisa assombrosa o nosso corpo, os braços nunca fraquejaram. Elisa, minha neta, aqui não podes ficar, quis levar-te para mais longe mas afinal é para bem perto que terás que vir.

Próxima publicação: 15 de Outubro

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