segunda-feira, março 12, 2012

Cais 14

Cais 14 é o nome do cais da vila de Alhandra. Foi também o título de um espectáculo que aconteceu este fim-de-semana naquela localidade, um projecto de teatro comunitário construído de raiz por quem nele participou. 111 pessoas, dos muito jovens aos muito idosos, numa onda positiva de vontades que todas juntas reavivaram memórias e identidades, histórias e personagens do imaginário de todos quantos ali têm levado as suas vidas, virados para o rio Tejo.

Os textos, tal como tudo o resto, foram construídos colectivamente. "Cada um de nós é um rio. Cada um de nós é um cais.", foi um pedaço que integrou um dos momentos do espectáculo, uma ideia que desenvolvi a partir da célebre citação de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."

Embora todo o texto seja talvez mais compreensível para quem esteve envolvido no projecto e conheça a terra, ainda assim deixo-o aqui na sua versão integral, mais que não seja porque, na sua conclusão final, podemos enquadrar a vida de qualquer um de nós:

CAIS 14

"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."

O Cais 14, em Alhandra, é a margem que comprime o Tejo e o empurra para o seu destino. Vivem assim enlaçados, o rio e o Cais, como se de um namoro se tratasse.
Este namoro entre o rio que tudo arrasta e o Cais que o comprime construiu a vida de muitas pessoas ao longo dos tempos.

À beira deste Cais construíram-se as vidas de agricultores e pescadores, atletas e escritores, músicos, operários, homens que nunca foram meninos, mulheres que sempre tiveram força.

Todos aqui vieram em algum momento. Entraram nos barcos e lançaram as redes ao rio. Nadaram para vencer o medo, para vencer o frio, para vencer o rio. Vieram ao nascer do sol para lavar a roupa, chegaram ao fim do dia para chorar a dureza da vida. Vieram durante a noite para conversar, conspirar, rir, cantar e dançar, dormir. Amar.

A partir do Cais 14, os homens e as mulheres buscaram no rio o seu sustento, mas também a sua inspiração. Para isso invocavam as Tágides, que dizem ser as ninfas do Tejo. O alento dos mortais sempre pareceu mais fácil com a ajuda da divindade. E por isso elas existem, e são belas, e também elas gostam de se sentar no Cais 14 a contemplar o rio.

Mas de onde vem, afinal, a inspiração? De onde vem o talento? De onde vem o alento para levantar todos os dias e trabalhar, construir a própria vida? Será que vem do rio, será que vem das ninfas? 
Na verdade, tudo o que se constrói nasce da vontade dos homens e das mulheres. São essas vontades que ditam o que chega ao Cais e o que abandona o Cais. Foram essas vontades que construíram, junto ao rio, a casa da Música, do Teatro, do Desporto, da História.

E o que existe mais, para além das vontades? Existe o riso. A esperança. A perseverança. A solidariedade. A dança. O olhar. O beijo. De tudo isto se fazem as vidas que chegam e partem do Cais 14.
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as vidas que em torno dele se constroem.

Cada um de nós é um rio.

Cada um de nós é um Cais.