quinta-feira, abril 26, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #4



Eva Nascente, depoimento
A verdade é uma coisa que não se sabe em que mundo habita, sabe-se apenas que ninguém é dono dela. Também eu não a possuo. A música que criámos foi o resultado de nós dois e feita com todo o amor que tínhamos um pelo outro. Na essência dessas músicas podemos encontrá-lo a ele com o seu imenso talento, e encontro-me eu com a minha magia. A essência de qualquer um de nós manifesta-se sempre, não há como evitá-lo, eu não sou excepção. Mas a nossa história é de excepção, e assim se tornou também a música que criámos. Como poderíamos saber, ele ou eu, o que viria depois? Quando começámos a compor juntos surgiu a música que nunca antes se tinha feito. É sempre assim com aquilo que decidimos fazer ou ser em cada momento, é impossível prever que mundo novo vai surgir. Criámos uma nova realidade que trouxe as suas consequências. O que aconteceu nos concertos é na verdade muito simples de explicar. A música soltou a magia que está na minha essência, que voou sobre as cabeças, inundou os espíritos. Era um encantamento, sim, mas não o será toda a música, independentemente de quem a faça nascer? E não podemos esquecer o amor que nos unia. Estávamos de tal modo encantados um pelo outro que cada actuação em palco era o equivalente ao sexo que marcava os nossos momentos de intimidade. A nossa música reflectiu também aquilo em que nos tornámos quando nos perdermos de amor um pelo outro. Dir-se-ia então que um encantamento como este só poderia despertar o bem, nunca o mal, e no entanto vimos pessoas a reagirem de formas muito más… Pois bem, assim como se diz que cada cabeça a sua sentença, eu passei a acreditar que também é assim com a magia. O mesmo encantamento não resulta igual em duas pessoas. Depende do que encontra quando lá chega, o encantamento, à pessoa. Não há bons ou maus encantamentos, magia branca ou magia negra. A magia que chegou a cada um fez o efeito conforme a essência dos corações. Para uns despertou a alegria, para outros a amizade, o amor, a libido, e para outros ainda, o ódio, a violência, a inveja, a tristeza. O que faz a diferença não é a magia, é a essência de cada um. Não fosse eu a Eva que sou, não fosse ele o homem que é, esta história não teria existido, mas outra.

Próxima publicação: 3 de Maio

quinta-feira, abril 19, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #3



Homem, depoimento
A banda ganhava cada vez mais sucesso. Embora as músicas fossem as mesmas de sempre, a voz da Eva dava-lhes uma nova alma. Bem sei que qualquer um que suba a um palco passa por uma transformação. Deixamos de ser nós próprios, vestimos um personagem, brilhamos como deuses vindos de outro mundo. Um brilho que na verdade não é mais do que o olhar dos comuns mortais que nos cercam, e assim nos consideram seres de outro mundo. À nossa dimensão também já tínhamos essa experiência. Mas mesmo assim, desde logo percebemos que com a Eva passava-se algo de diferente. O que era estranho e fascinante ao mesmo tempo, é que também nós, em cima do palco, acabávamos reduzidos ao mesmo olhar de admiração do nosso público. Parece um lugar comum dizer que os olhos dela brilhavam, que o cabelo dela esvoaçava, que às vezes parecia levitar. São comentários possíveis de fazer sobre qualquer cantor em qualquer concerto. Mas ela era… simplesmente deslumbrante. Rapidamente se tornou num fenómeno de popularidade. Os concertos tinham cada vez mais gente, uma legião de fãs fascinados, dirão uns, apaixonados, dirão outros, hipnotizados, embruxados…

Mas as coisas verdadeiramente estranhas, só começaram a acontecer depois de eu e ela compormos em conjunto. Por essa altura a banda já estava com muito sucesso. Regravámos o primeiro disco com a voz dela e duplicámos as vendas em relação à primeira edição. Logo de seguida gravámos outro álbum com novos temas, e no mesmo ritmo frenético saímos em digressão para o promover. Logo nos primeiros concertos, ao som destas novas músicas, vimos coisas que nunca imaginaríamos. Acontecia de tudo. Algumas pessoas ficavam imensamente felizes, vinham agradecer-nos no final dos concertos como se fôssemos todos velhos amigos, de tempos imemoriais. Espectadores abraçavam-se entre si, e sei que em muitos casos se lançaram as sementes para grandes e sólidas amizades, até mesmo amores para a vida toda. Outros ainda lançavam-se em práticas sexuais desenfreadas, aliás, os primeiros problemas com a polícia foram justamente por causa das orgias que aconteciam nos recintos dos espectáculos. Mas aconteceram outras coisas que poucos conhecem. Uma delas é que ainda hoje continuo a receber correspondência de pessoas que juram, pela própria vida, ter visto Deus a assistir aos concertos. E a ser verdade o que afirmam, também Jesus Cristo, o Buda, a Virgem Maria, o profeta Maomé, e mesmo Jim Morrison terão vindo de propósito para nos ver e ouvir...

Havia depois a outra face desta moeda, havia os outros. Que incendiavam os cabelos do vizinho da frente. Que se lançavam à pancada sem qualquer motivo. Que choravam e desesperavam, que tentavam o suicídio. O assassínio. Meia hora de concerto era o suficiente para ver surgir entre a assistência, de forma descontrolada, o espectáculo de todas as emoções humanas, das melhores às piores. Era o caos. Os relatos das primeiras mortes foram para mim o fim do estado de graça. Foi nessa altura que comecei a ver para além da paixão, que tinha tomado conta de mim a ponto de pensar que não precisava de mais nada na vida. O que se passava de tão diferente nos nossos concertos? Era apenas música, porque é que sucediam tantas coisas estranhas? A estas perguntas seguiu-se outra, sorrateira, uma pergunta que já se impunha desde o primeiro dia: quem era Eva, de onde tinha vindo?

Próxima publicação: 26 de Abril

quinta-feira, abril 12, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #2



Homem, depoimento
O que se passou a seguir é muito fácil de descrever: não houve tempos mais felizes. Quando evoco essa época sinto um torpor de contentamento que ainda hoje me sustenta. A Eva entrou nas nossas vidas, na nossa banda, na minha cama, no meu coração. Cantava tão bem, foi apenas natural colocá-la como vocalista. As nossas canções ganharam outra alma, o público adorava-a. Todos a adorávamos. Era como se qualquer pessoa que a conhecesse ficasse irremediavelmente apaixonada por ela.

Eva Nascente, depoimento
Jamais imaginei que fosse assim. Vivi aqueles primeiros tempos com a sofreguidão de um recém-nascido. E no fundo foi isso mesmo que me aconteceu, eu que nunca nasci e jamais morrerei, pude com a minha decisão de me juntar aos homens ter essa experiência, a do nascimento. Foi por isso que atribuí a mim própria um novo nome: se antes era Eva sem ter nascido, depois de nascer tornei-me Eva Nascente. Eva Nascida? É claro que não. Eu, assim como todos os homens, depois de nascer uma vez nunca mais deixei de o fazer. Nascente, como a nascente dos rios, porque uma das coisas que descobri é que, a cada nova experiência vivida, nascemos daquilo que somos para ser aquilo em que nos tornamos.

Nesta minha condição pude experimentar sentimentos até então desconhecidos. A paixão. A alegria. O desejo. O amor. A angústia. A decepção. A lucidez. Quis e acreditei que eu também podia pertencer à espécie humana. Andava tão encantada nesta minha nova vida, que me parecia ser nada o que antes eu era. Olhava para o meu passado e parecia-me ter antes vivido num mundo de sonho, um sonho do qual tinha agora despertado, regressando finalmente à vida real. Olhava para o meu amor e via nele a razão de ser de tudo, o grande responsável por trazer à luz do dia tudo o que em mim se encontrava adormecido. Foi por isso coisa natural querer ajudá-lo no que pudesse fazê-lo feliz. Os homens não vêem bem certas coisas, nem mesmo usando óculos, mas eu entendi muito bem que quando ele sobe ao palco, a sua essência surge em todo o seu esplendor. Tocar e cantar, receber a admiração, os aplausos e a alegria de quem o ouve, em conjunto com os seus companheiros, eis como se consuma a sua existência. Quis ajudá-los neste processo de tornar essência em existência, contribuir para aquilo que o torna tão feliz. E convenci-me de que também eu tinha encontrado a felicidade eterna, acreditei sinceramente que era humana. Só que, no meu desejo de concretizar a essência dele, esqueci-me da minha, e humana não sou. Foi esse o meu erro. Não me arrependo de nada, mas reconheço que de todos os sentimentos humanos que pude experimentar, nem todos consegui suportar. Só mesmo um ser humano para ser esmagado pela dor, sofrimento, ódio, e mesmo assim, continuar vivo.

Próxima publicação: 19 de Abril

quinta-feira, abril 05, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #1




Homem, depoimento
Entrámos por aquela estrada porque pensámos em cortar caminho e ganhar tempo. Não esperávamos que mais à frente ela quase desaparecesse, ficando pouco mais do que um carreiro no meio da vegetação. Muito rapidamente ficámos perdidos, e uma floresta que nunca antes tínhamos notado, praticamente decidiu engolir-nos. Como um azar nunca vem só, a gasolina faltou e nesse dia não conseguimos chegar a tempo de fazer o concerto. Enquanto um de nós, já não me lembro qual, foi à procura de um posto de combustível, ficaram os outros a tomar conta dos instrumentos. Nessa altura ainda era pouca coisa mas era tudo nosso. Agora que penso nisso não era bem assim, a bateria ainda não estava toda paga. Na verdade, tínhamos mais inspiração do que dinheiro. Mesmo assim já tínhamos gravado um disco, tocávamos todos os fins-de-semana, e embora muitos olhares objectivos nos dissessem o quanto este projecto era inviável, tínhamos empenhado o nosso dinheiro, o nosso tempo, toda a nossa alma para viver apenas da música que criássemos. Sentíamo-nos autênticas estrelas. Não interessa se éramos os únicos a achar isso, andávamos felizes assim.

Mas nada disto nos poupou a ficar horas e horas à espera da gasolina. Para passar o tempo resolvi tocar guitarra. E foi logo de seguida que a Eva apareceu. Ela própria afirmou que tinha vindo atraída pela música, quanto a nós, acho que ficámos desde logo atraídos por ela. Eu especialmente. Sentou-se ao pé de mim e começou a cantar. Todos sabem hoje em dia a voz maravilhosa que ela tem, ou pelo menos deveriam fazer um esforço por se recordarem. Mas aqueles primeiros instantes foram especiais, porque ela cantou só para nós. Parecia que até o ar se tinha aquietado para que ela se pudesse ouvir melhor, foi um momento… mágico. Quando o nosso companheiro voltou com a gasolina e pudemos seguir viagem, ela acompanhou-nos com a mesma naturalidade com que tinha surgido dos arbustos. É um pouco bizarro contado assim, mas de facto nunca ocorreu, a nenhum de nós, perguntar-lhe de onde vinha, o que fazia, o que pretendia. Embruxados? Enfeitiçados? A isso não sei responder. A quem interessar saber como começou, aqui está a realidade, tal qual aconteceu.


Eva Nascente, depoimento
A explicação é muito simples, quis saber como era do outro lado. A vontade de conhecer outros mundos não pertence só aos homens. Este mundo que é o meu já não tinha segredos para mim, o mundo dos homens tinha tudo por desvendar. Acusam-me de os ter atraído para mim mas isso não é verdade. Foi ele, com a música que tocava, que me retirou desde logo todas as forças para resistir. A primeira a ser enfeitiçada fui eu. Sempre me ensinaram que a minha espécie e a dos homens não pode co-existir, que vivemos em dois mundos opostos, mas ao som da música parece-me claro que existe pelo menos esse ponto em comum. Foi por isso que comecei a cantar. Depois… Eles eram uma espécie de ponte que me podia levar sem suspeitas para um mundo cheio de coisas para explorar. Tinha sede de aprender, ainda tenho. E no fundo foi só permitir que algum encantamento lhes entorpecesse o espírito, os deixasse predispostos a levar-me com eles. Mas também eu já os acompanhava meio entorpecida, também eu parti sob encantamento.

O mundo dos homens tornou-se ainda mais fascinante por causa daquele homem em particular, é um facto que não pretendo negar. Por causa disso mesmo, e apesar das adversidades, fui duplamente abençoada. Naquele dia abriram-se-me as portas de dois mundos: uma para o mundo dos homens que tanto queria conhecer; outra para uma forma de emoção que até então jamais sentira. Nunca foi minha intenção provocar qualquer mal. E em minha defesa o afirmo, foi sobre mim que se abateu o maior dos sofrimentos.

Próxima publicação: 12 de Abril

segunda-feira, abril 02, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora #Prólogo

Primeiro aviso à navegação: Resolvidas que estão as questões da propriedade intelectual deste sítio, irei nos próximos tempos publicar alguns contos, na gaveta desde 2005-2006, período em que praticamente todos foram escritos ou finalizados. Chamo-lhes contos porque em termos formais é com isso que se parecem. Já a pensar em publicá-los aqui, obriguei-me recentemente a relê-los e a conclusão a que chego não é muito diferente daquela a que cheguei em outros momentos. São o que são, nem especialmente brilhantes nem especialmente maus, mas são meus. E já que nunca foram impressos em papel, pois que chegue enfim a sua hora de serem apresentados aqui, para leitura daqueles que para isso tiverem disponibilidade, interesse e paciência.

Segundo aviso à navegação: Não percebo nada de música. Nada mesmo. A música de que gosto é sempre porque sim, estou completamente à margem de gostos mais requintados e elitistas em matéria musical. A música clássica aborrece-me (excepto as quatro estações do Vivaldi e o requiem do Mozart. Porquê? Não sei. Porque sim). O jazz para mim é pior ainda, acciona um botão que deve existir algures num dos meus lobos temporais e que me desliga o cérebro, deixando-me a navegar em pensamentos que variam entre a roupa que está para passar a ferro, a necessidade de aproveitar a hora de almoço do dia seguinte para ir à depilação e, quando muito, uma concentração obssessiva pelos riscos que estão no soalho/parede/tecto ou outro sítio qualquer para onde esteja a lançar o meu olhar bovino. Dito isto, a verdade é que gosto de ouvir música e que me estou a borrifar se a dita é comercial ou não é. E portanto, não percebendo nada de música mas gostando de a ouvir e de a cantar, sou uma ouvinte inconstante e incoerente, que tanto gosta de pop como de rock, ou de música portuguesa (desde que não seja o André Sardet, pelamordedeus) e por aí fora. Gosto no fundo de qualquer coisa que calhe a tocar-me no coração, sem grandes preocupações de erudição e quem sabe, ande por aí a música jazz que consiga entrar sem desligar o botão. Ouviremos.

Adiante. Pode não parecer mas do que eu quero mesmo falar é de literatura. No meio disto tudo, a dado momento dei comigo a gostar muito de ouvir o álbum "Fallen", dos Evanescence e a descortinar no meio daquelas canções - e também dos videoclips, com uma imagem muito própria - uma história para se contar. O conto que construí a partir daquelas músicas é o que irei começar a publicar aqui durante esta semana e que será postado em 11 partes, tantas quantas as canções que integram o "Fallen". A cada parte corresponderá uma música do dito álbum. (E sim, eu sei que o José Luís Peixoto já fez uma coisa semelhante ou igual com os Moonspell. Não é o mesmo, nem pretende ser).

Último aviso à navegação: Depois de ter escrito este conto nunca mais ouvi os Evanescence, desconheço o que é que tocam hoje em dia e nem sabia que ainda existiam como banda, até esta notícia de que vinham ao Rock in Rio em Maio (já tinha avisado, eu no que toca à música, não tenho espinha dorsal).

De maneiras que é isto. Depois desta conversa toda era só para dizer que "Eva Nascente. Um conto com banda sonora" vai começar a ser postado na próxima 5.ª Feira, 5 de Abril, e terminá a 25 de Maio, data em que os Evanescence sobem ao palco do Rock in Rio.