segunda-feira, setembro 24, 2012

Elisa, filha de ninguém #3/7

De quem és tu filha. A menina nasceu em noite de lua nova, escura como breu. Foram tantas as trevas em volta que é justo dizer-se que nessa noite não se deu à luz. Não se ouviram os gritos desesperados do parto, não houve correria do quarto para a cozinha, ninguém ouviu, ou o que é pior, ninguém quis ouvir. Maria pariu sozinha e em silêncio, de cócoras sobre uma selha, conforme tinha visto fazer a outra a quem tinha sido preciso ir ajudar. Às escuras, a bebé saiu do ventre materno e mergulhou no fundo da selha para onde já tinham vertido as águas e o sangue que durante meses a mantiveram viva e de boa saúde. Ninguém a amparou. Elisa ainda despertou a tempo de ouvir os sons que a alertavam para que algo estava mal, mas tarde demais os compreendeu, a criança afogou-se, disse a Maria para logo se calar. Nasceu e morreu sem nome, sem pai, mãe, parentes. Nesta história, de quem és tu filha é pergunta que eternamente ficará sem resposta.
 
Os donos da casa despertaram enfim, não apenas do sono dormido, mas também daquele que os mantinha longe da realidade. Maria e Elisa eram filhas de um homem chamado Manuel. Um homem do campo, ignorante e sem maneiras, um bom filho de Deus, mas nem por isso menos consciente dos seus deveres de pai. Para que se veja como às vezes se julgam erradamente as pessoas, afinal foi a este homem sem instrução que se ouviram os primeiros gritos de revolta perante o sucedido. Gritou com a filha que em silêncio parira e em silêncio se mantinha, apenas olhando a selha onde permanecia o objecto da sua culpa. De longe em longe lá conseguia distinguir os gritos do pai a perguntar coisas, que de tão óbvias, nem tinham resposta possível. Porque tinha ela feito semelhante coisa. Para quê esconder a gravidez, e pior, deixar morrer assim uma criança. Que espécie de mulher era ela, que isto nem fora coisa de gente, como pudera deixar cair a criança, nem os bichos renegam um gesto tão simples, este de amparar a cria, que coisa horrível, e agora. Os gritos duraram o seu tempo e depois cessaram, é assim com todas as coisas do mundo, sejam elas uma gravidez, uma vida, uma dúvida, uma certeza, duram o que têm que durar, depois cessam e tornam-se noutra coisa qualquer.
 
Reposto o silêncio, foi a vez da Maria o quebrar, afinal alguma explicação tinha que surgir, e não apenas para os outros, para si própria também. Maria falou de vergonha. De falta de coragem. Do dinheiro que a família não tinha, e que tornavam impossível o casamento que as boas regras impunham. Que alternativas existiam? Nenhumas. Não casar seria a pior condenação de todas, mãe solteira, como poderia ela sair à rua, como entraria na igreja, como enfrentaria os olhares inquisidores dos outros, espreitando ao postigo sempre com uma pergunta a reclamar uma resposta, de quem és tu filha, de quem és tu mãe, de quem és tu namorada, de que espécie és tu, aqui detrás do nosso postigo que nos protege de todo o mal vamos encaixar-te numa categoria qualquer, não teres nenhuma é que não pode ser, e então cá vai, boa filha, mulher honrada, mãe solteira, mulher da vida, prostituta, a escolha está feita, que Deus te perdoe e te afaste de nós.
 
É verdade, estas explicações não convencem ninguém até hoje, mas talvez seja porque Maria acabou por falar mais para os outros do que para si. Não consta que tenha dito, e se calhar nunca o pensou, não quero ser mãe ainda, cada coisa a seu tempo e este não é ainda o meu tempo. Maria deixou por dizer coisas chocantes como estas que se seguem, esta que aqui jaz não é minha filha porque por muito tempo nem sabia que a tinha e depois de saber nunca a desejei. Nunca foi minha porque se soubesse como tirá-la do meu corpo tinha-a tirado há já muito tempo. Não é minha filha porque quando as mães não o querem ser, aos filhos só lhes resta serem filhos de ninguém. Por aqui se vêem os mistérios da vida. Um dia, muito para além do tempo em que decorre esta história, um escritor dirá que onde nasce um filho nasce também uma mãe. Belas e verdadeiras palavras serão. Menos belas, porém também verdadeiras, são estas que resultam do que a Maria gostava de ter dito e não disse, que a mãe afinal só nasce se for ela própria a desejá-lo. Já os filhos para nascerem, até onde chega a sabedoria dos homens, nunca se ouviu dizer que a sua vontade conte para alguma coisa.
 
Tudo isto são conjecturas, invenções, falsidades. Regressemos aos factos, agora que terminaram as explicações e impera de novo o silêncio. Aos pés de todos, o cadáver de uma recém-nascida sem nome. Mas já que nos demos ao luxo de pôr explicações na boca da mãe, tenhamos também a ousadia de baptizar a recém-nascida. Seja então Elisa o nome dela, por parte de uma tia que se tivesse acordado mais cedo tudo teria sido diferente. Quem sabe, por esta altura, talvez a noite e os corações não estivessem tão escurecidos, e a criança não estivesse sendo tristemente apelidada de Elisa, filha de ninguém.
 
Próxima publicação: 01 de Outubro

segunda-feira, setembro 17, 2012

Elisa, filha de ninguém #2/7

De quem és tu filha? Eis a pergunta que se impõe e nos coloca de novo frente ao portão que dá acesso ao quintal, uma pergunta que nos devolve à história que já tarda em ser contada, e que afinal, se calhar, é acerca de coisas que mudam e de coisas que ficam sempre na mesma.

Recordemos então as duas irmãs que em tempos a habitaram, e que por ser bem sabido de todos de quem eram elas filhas, nunca foi preciso perguntar. A Maria e a Elisa, no seu tempo de solteiras, dormiam juntas em colchão de palha, num tempo que, pela via das maravilhas da ciência e da técnica, não está a cem, mas antes a mil anos de distância desta realidade que foi a dos nossos avós e bisavós. Igual em todos os tempos será talvez a preocupação de um pai com as suas filhas, a sua vontade de educá-las o melhor possível, corrigi-las quando assim tiver que ser, protegê-las de tudo, do mundo inteiro e até mesmo, quem sabe, delas mesmas. Iguais serão também as crianças e os jovens desde sempre, a sua curiosidade pelo desconhecido, a sofreguidão pela vida, o seu modo ansioso e intempestivo de descobrir o mundo, de descobrir-se no mundo, de amar e ser amado. E se nesta sofreguidão por vezes acontecem erros, enganos, maus actos, também isto é coisa que sempre foi assim e sempre assim será, quem nunca pecou, etecetera, sobre esta história já todos sabemos o que nos quiseram contar.

Neste modo de viver igual ao dos seus semelhantes, a Maria é também uma jovem comum, com pai e mãe, namora com o seu consentimento, e só aguarda que a família viva tempos mais abonados para que se possa casar, na lei dos homens e na lei de Deus, com o homem que escolheu. Aguardar sim, mas não para tudo e não para sempre, a verdade é que esta espera, de tão longa, foi insuportável para os dois jovens que tinham demasiada coisa para descobrir um no outro. Não esperaram, e aqui nos deparamos com outra banalidade igual desde que o mundo é mundo, mesmo no tempo em que era suposto e recomendado que se esperasse, a verdade é que poucos esperavam.

Durante meses, a gravidez da Maria foi coisa desconhecida de todos, menos dela própria e da sua irmã, Elisa. Encostada a ela toda a noite, sentia no próprio corpo a agitação do ventre alheio, e testemunhava em silêncio a existência daquela vida. A luz do dia dava-lhe coragem para a pergunta que se impunha, Estás prenha, e a resposta era sempre a mesma, Não estou, não estou, não estou.

Próxima publicação: 24 de Setembro

segunda-feira, setembro 10, 2012

Elisa, filha de ninguém #1/7

O crime nunca foi denunciado. Não houve investigação policial. Se alguém houve que tenha desconfiado, visto ou ouvido dizer, nunca falou, calou-se para sempre. Esta história ficou retida no silêncio de todos quantos nela se envolveram, apenas sussurrada de algumas mães para algumas filhas, na urgência de contar o segredo da menina que da vida apenas soube o que foi nascer e morrer. Talvez porque chegou cedo demais, não teve direito a pertencer à família que mais tarde, aos que chegaram no tempo certo, soube criar e acarinhar. Foi há muitos anos atrás e os que viveram os acontecimentos já morreram todos.
 
A casa ainda lá está, recuperada por filhos, primeiro, depois por netos. É o melhor dos lugares para o descanso de fim-de-semana, e para isso mesmo lhes serve. A paisagem em volta é magnífica e o clima, apesar de sempre agressivo, seja Verão ou Inverno, traz aos corpos o vigor e a saúde próprios de tudo o que permanece em estado puro. São muito poucos os que sabem do que por lá se passou, e mesmo dos que chegaram a saber, já ninguém está para se lembrar disso. Esta casa de hoje em dia tem água e luz, máquinas para lavar, secar e cozinhar, chão de madeira e pedra, tapetes, camas e sofás. O quintal em torno dela está coberto por uma fresca manta verde onde se espojam primos e primas, brincadeiras alegres das crianças que são já o fruto da sexta geração desta família.
 
É uma aldeia igual às outras todas. Uma terra que se vestiu com ares de modernidade, aderiu ao conforto e nalguns casos mesmo ao luxo, em tudo diferente da época a que remonta a ocorrência, registe-se, primeira década do século vinte, aos anos que isto foi. Grandes diferenças se encontram realmente, saltam à vista, porém aos que têm um olhar mais profundo, seja por hábito ou porque a sua natureza não lhes permite olhar de outra forma, não deixarão de notar o que permanece sempre igual, e não apenas nos lugares, mas sobretudo nas pessoas, que é quem faz os lugares serem o que são.
 
Observemos. Nesta rua principal, que é mais ou menos a única, vemos passar o tractor, o burro, a carroça, em sã convivência com os carros e motas de alta cilindrada, estes últimos exibindo-se aos Sábados e Domingos, eclipsando-se inevitavelmente durante a semana. Contra-argumentemos então, tudo o que foi antes dito não faz sentido, está de facto diferente a aldeia, pertence sem dúvida ao século vinte e um. Porém agita-se o vento ao final da tarde e entra pelas narinas o cheiro dos porcos e das uvas fermentadas. Respiremos fundo para que se nos encha o peito com o cheiro do lume, aceso assim que o sol se põe. É que as noites, por estes lados, até em pleno Verão podem ser de gelar os ossos. Olhemos no fundo dos olhos dos velhos e das velhas vestidos de negro, que se quedam à porta de casa ou das adegas, de mão na vista protegendo do sol para melhor verem quem passa, e inquietos, vejamos enfim um modo de olhar que é o mesmo desde o início dos tempos, sintamos a modernidade à nossa volta a perder o seu brilho e vigor, afinal não passas de pó e ao pó tornarás. De quem és tu filha?, perguntam sem cerimónias. Quem se ofende com a pergunta é porque não é deste mundo.

Próxima publicação: 17 de Setembro