As vinhas dão
trabalho o ano inteiro. É preciso podar, depois empar, curar, vindimar. Lavar
os cestos. Pisar as uvas. Fazer o vinho. Lançam-se as sementes à terra e brotam
as batatas, o trigo, as favas. Quem olhar com atenção vê que o trabalho também
brota da terra, não é coisa que se coma ou beba, mas pensando bem, sem trabalho
não há o que comer, e isto é verdade em todos os tempos do mundo. Quem não tem
terras precisa de trabalhar, quem as tem precisa de quem as trabalhe. Mas em
Agosto não há trabalho, só há calor.
Já é fim de
tarde mas o calor continua opressivo, doentio, o ar irrespirável. A estrada é
comprida e é só uma, atravessa a aldeia de ponta a ponta, a casa é das
primeiras e já se vê ao longe, mas lá em cima. Demasiado lá em cima para o
calor que está. A Estrudes regressa a casa pela rua deserta, portas e janelas
fechadas. Todos os que a isso se podem permitir esperam que o estio dê uma
trégua para então saírem.
Quanto a ela,
não tem esse privilégio. A sua condição de viúva vestiu-a de negro desde os
trinta, já lá vão três anos. É a conta que Deus fez. Talvez por isso seja
também em número de três os filhos que lhe ficaram, mais a mãe, todos por esta
hora à espera dela. O mais velho só tem seis anos. Há também a menina e o filho
mais novo, tão pequeno ainda, tão pequenos todos.
O marido morreu
a trabalhar, atropelado pelo carro de bois que comandava. Donde se conclui que
o trabalho não dá só do que comer, também dá do que morrer. Neste início de
século vinte, num sítio em Portugal que mais tarde alguns letrados poderão
chamar de profundo, a Estrudes recebeu de indemnização, pela morte do marido, o
facto de poder contar apenas consigo própria para sobreviver e cumprir a sua
obrigação de criar três filhos e sustentar a mãe.
É claro que
ninguém se chama Estrudes, o nome certo é Gertrudes. É o modo de falar das
gentes que lhe abrevia a pronúncia. E por misteriosa decisão da progenitora, a
Gertrudes tem outro nome, é Gertrudes Luísa. Não deixa de ser coisa estranha dois
nomes assim reunidos. Se o primeiro se percebe no meio rural que reconhecemos
pela paisagem em volta, de onde teria vindo a Luísa, nome de gente distinta, a
destoar em tudo nesta mulher? Luísa pressupõe certa fineza nas mãos, no rosto e
nos modos. Não é nome para camponesa. Apetece ir bater ao postigo daquela
casinha, tão pequena, como pode viver lá tanta gente, diga lá minha senhora,
como é que se lembrou de juntar a Luísa à Estrudes? Provavelmente a resposta
seria igual à de tantas mães pelo mundo fora, porque sim, porque gostei, porque
olhei para ela e foi o nome que Deus me segredou. Se quisermos especular,
fantasiar, podemos inventar uma resposta mais poética: Estrudes Luísa porque se
o destino de Estrudes já ela o tinha por garantido, ao menos que no nome
houvesse a esperança de um dia ela poder ter outro, um destino de Luísa, quem
sabe. E simplificando, reconheçamos apenas que soa bem.
Satisfeita a
curiosidade onomástica, voltemos para o calor da rua. Mais forte que ele parece
ser a Estrudes, que caminha a passo seguro, direita a casa. Já não é tempo de
moças que vão formosas e não seguras. Com uma vida tão dura, trinta e poucos
anos já chegaram para que se perdesse a mocidade e a formosura da Estrudes
Luísa. Os passos são porém seguros. Quando se fica viúva e com três filhos para
criar perde-se o direito à fragilidade. Qualquer Luísa teria que deixar de o
ser, esta não foi excepção. Ficou somente a Estrudes para trabalhar no campo,
na casa, no que houver, porque o trabalho é que não pode faltar. A Estrudes não
chora a morte do marido porque isso não dá de comer a ninguém, não se lamenta
por estar condenada à solidão ainda tão jovem, estas questões não são deste
tempo. A Estrudes não fraqueja nem permite que o desespero tome conta dela. Não
se engana nas contas embora não saiba ler nem escrever, paga sempre tudo o que
deve. A Estrudes já anda meia curvada, pela dureza do trabalho e pela dor de
tudo o que lhe aconteceu. O seu semblante endureceu, a falta de afecto vai
acabar por secá-la por dentro, mas isso não é culpa de ninguém, nem sequer dela
própria, e o seu passo é seguro, porque não pode ser outro.
Algumas vezes à
noite, quando todos dormem espalhados pelas três divisões da casa, a Luísa que
há na Estrudes sente saudades e dá-se ao luxo de chorar, perguntando-se por que
razão tem o seu caminho que ser tão difícil. Nesses momentos suspira por uma
vida mais fácil e deseja, com todas as suas forças, que ao menos uma única vez,
em alguma pequena coisa, a vida se limitasse a exalar o perfume da rosa e deixasse
os espinhos para outros que não ela.
Neste Agosto em
que não há trabalho o desespero está cada vez mais difícil de controlar. Dia
após dia temo-la visto sair de manhã, ainda com a ilusão do ar fresco que
depressa se desvanece, indo a cada dia um pouco mais longe, à procura do
sustento que não surgiu em lado nenhum. Já perdeu a conta aos dias em que
regressou a casa, tal como a estamos a ver agora, todas as expectativas
frustradas. E o desespero, na maior parte do tempo tão bem domado no fundo de si
própria, a cada regresso tem vindo a ganhar novas forças, tornando-se
lentamente numa besta abominável, apenas à espera que a última amarra se solte
para irromper e tomar conta de tudo.
Uma proposta de
casamento surgiu recentemente e aguarda resposta. Também viúvo, também com dois
filhos pequenos, quem é mãe de três pode ser mãe de cinco, este homem é dos que
têm terras para dar trabalho aos outros. Curiosamente, agora que as suas preces
foram finalmente atendidas e o caminho mais fácil se perfila à sua frente, a
resposta da Estrudes tem tardado a ser dada. Não estás cansada de enfrentar o
mundo inteiro sozinha, três anos já não te chegam? Por quanto tempo vais tu
conseguir criá-los assim, não seria melhor se? Estas palavras são da sua mãe,
são de si própria nas noites que já conhecemos, e a resposta parece óbvia. Mas
estranhamente, o desespero parece encontrar na figura deste homem novos meios
para se agigantar ainda mais dentro dela. Nos últimos tempos, e a cada regresso
a casa sem trabalho, a possibilidade do casamento foi ganhando diferentes
contornos. A cada dia que passa, parece ser a única forma possível de continuar
a dar alimento aos filhos. Mais do que o caminho para uma nova vida, esta
proposta é uma questão de sobrevivência.
Este caminho
será certamente o mais fácil, mas onde está, que é feito do perfume da rosa,
por que motivo não se faz ele sentir? Em tudo isto pensa a Estrudes de noite.
No dia seguinte, cada vez mais cedo porque é preciso ir cada vez mais longe,
nova tentativa para encontrar trabalho, que o desespero ainda não reina, embora
falte pouco.
Foi com todo
este peso que saiu de casa hoje de manhã. Nunca a Estrudes fez tanto jus ao seu
nome. Curvada perante o inevitável, há vários dias que já entendeu como é
inútil esta busca pelo trabalho que não há. Mesmo assim voltou a sair, levou o
seu desespero a passear, quanto à esperança, já há mais de uma semana que
desistiu de a acompanhar. Cada vez mais próxima de uma decisão que dará
alimento aos seus filhos, como que por castigo a lembrança do marido morto
tem-se tornado cada vez mais forte e acompanha-a sempre no seu caminho.
Calcorreou os lugares, bateu a todas as portas. Já nem se sentia reagir quando
a resposta vinha, sempre a mesma, sempre igual. E tal era o seu estado de
resignação que nem se deu conta, ao princípio, quando por uma única vez a
resposta não foi a mesma de sempre. Hoje, no dia em que a vemos, a Estrudes
arranjou trabalho.
Quem a vir agora
a subir a estrada, direita a casa, vê uma mulher precocemente velha dobrada
pelo peso da trouxa de roupa que trouxe para lavar. Mas quem como nós teve o
privilégio de a poder acompanhar, sabe bem que a Estrudes trouxe um fardo de
roupa pesado mas deixou ficar para trás outros tantos fardos que lhe pesavam
muito mais.
O trabalho que,
de forma indiferente, aquela outra mulher lhe pôs nos braços, devolveu à
Estrudes o nome que lhe andava a faltar. Esta Estrudes que aqui vai hoje leva a
cabeça erguida e mais firmeza no andar, está inteira, é a Estrudes Luísa. Não é
Luísa por ser fina ou rica, isso nunca poderá vir a ser. É Luísa porque é dona
de si própria, leva consigo a dignidade de quem se sustenta a trabalhar. Esta
Estrudes Luísa desprezou o caminho mais fácil. Encarou o mais difícil e teve a
coragem de perceber que só este lhe convinha. Que só por aquele caminho poderia
continuar a trazer os seus dois nomes consigo. E que lhe assentam na perfeição,
façamos a justa vénia a quem a baptizou.
Ali vai ela
direita a casa, com o trabalho que foi possível encontrar hoje, melhores dias
virão, piores dias virão. Hoje e até que morra, não haverá outra forma de levar
a vida. A sua decisão só pode ser uma, e por incrível que pareça no meio de
tanto calor, parece levantar-se uma brisa com um ligeiro perfume de rosas.
O
pedido de casamento foi recusado naquele mesmo dia, para todo o sempre.