Recordo a visão de duas linhas paralelas que me deixaram à deriva de mim. A revolução começou aí mas já tinha começado antes, como sempre acontece com tudo o que se manifesta em nós, ou perante nós, em algum momento começou e nem ligámos, estávamos ocupados com outras coisas que julgávamos mais importantes. Levamos a vida enganados e nem sempre sabemos que nada sabemos.
Recordo um dia em Lisboa com uma fila de trânsito tão gigante que ia de uma ponta à outra de todo o meu mundo e me obrigava a parar, a parar, e que teimava em não me deixar chegar onde eu julgava ser o meu destino. O destino afinal estava certo, apenas não naquele dia. Mas em cada pára-arranca havia uma dor a dilacerar-me por dentro, perdida, tão perdida que eu andei, à procura de mim própria e sem me encontrar em lado nenhum, nem no que já não podia voltar a ser, nem no que a revolução me transformara já, mesmo enquanto a recusava e tentava deitá-la no lixo.
Recordo o medo, não há revolução que não o traga consigo, acho eu. Recordo uma jorna que afinal não era para mim e por causa disso, num segundo toda eu era medo da revolução que já era, no segundo a seguir toda eu me tornei medo que a revolução deixasse de me ser. Vejo agora quanto de mim gastei a ter medo, e disso me arrependo para o resto dos meus dias.
Recordo o silêncio que impregnou as folhas das árvores que estão no lugar das conversas difíceis. Gemeram baixinho à medida que a revolução passava por elas e depois se calaram para sempre. Outras vozes se fizeram ouvir, nos lugares das conversas dos afectos, no calor das mãos que se agarraram às minhas, nos passos que me acompanharam pelos caminhos. Foram essas as vozes que não me deixaram perder os pontos cardeais do que sou, nem permitiram que a revolução me fizesse abismo, ou o silêncio me fizesse rancor.
Recordo os olhares tristes dos prenúncios da morte, uma vez, depois outra, depois outra, até à sentença final que já se fazia anunciar e então nada mais restou do que um corredor comprido feito de todos os estágios da dor que se encontram identificados, mais todos os outros que ainda ninguém foi capaz de pôr por escrito, porque para tanto ainda não houve conhecimentos ou coragem. Percorri-o até ao fim sem pretensões de heroísmo, não vejo mérito na inevitabilidade. Cheguei ao outro lado sem ponta de mim própria, esvaída de tudo menos de perguntas, órfãs de destinatário e é claro, de respostas.
Recordo enfim o pensamento de que a revolução cessara e de que tudo fora, afinal, em vão. Não é verdade. A revolução abalou, trespassou, demoliu, não deixou pedra sobre pedra. Mas o ground zero em que me tornei é agora o espaço onde me reconstruo, num processo duro e doloroso, próprio do nascimento, que afinal acontece muitas e muitas vezes ao longo de toda uma vida. A revolução continua no que vier a tornar-me por causa dela.
Da minha filha que não chegou a nascer.