Mora no rés-do-chão de um prédio com todo o ar de que vai cair um dia destes. No andar de cima já não mora ninguém há muitos anos. A porta da entrada tem um postigo daqueles antigos, com umas barras de ferro, e todos os dias ela se deixa ficar ali horas e horas, a olhar a rua. Quem lhe passa à porta só consegue ver as mãos dela de velha muito velha, agarradas com firmeza às barras de ferro. Lá mais para dentro não se consegue ver nada, nem sequer 0 rosto, é só escuridão, como se nada mais houvesse para além daquelas mãos, nem mesmo uma casa, um corpo, alguém.
Porém não passa despercebida. Tem este hábito, incomodativo e demente, de se meter com todas as pessoas que passam na rua. A todos pergunta o mesmo, que dia é hoje? Que dia é hoje? É Segunda, é Domingo, é Quarta, vai assim tentanto manter presentes as contas dos dias, porque tirando os nomes que eles têm, ela já não lhes encontra nada que os distinga. Se calhar repete a pergunta porque, de cada vez que alguém lhe dá a resposta, já não a consegue manter na memória. Ou então, porque chamar assim pelas pessoas foi a maneira que encontrou de se manter ligada ao mundo deste lado, do lado de cá da porta que a encerra na escuridão, e que a cada momento a pode engolir para sempre, assim lhe faltem as forças para se agarrar às grades do postigo.
No outro dia, surpreendentemente, foi a uma janela onde batia o sol, e quem passava pôde enfim ver-lhe o rosto. Chamou, e chamou, e chamou, mas as pessoas já sabem que ela é maluca, e além disso sabem muitíssimo bem que dia da semana é e que exigências ele irá trazer, para estarem ali a perder tempo com ela. Quando finalmente alguém se aproximou, foi motivo de grande alegria e de muitas palavras de ternura, porque serão tão más todas as outras que chamei e não vieram. Que por favor lhe dissesse que saco era aquele encostado à sua parede, cheio de papéis que ela não entendia. Que vive sozinha no mundo, sem marido, e sem filho, e com isto chora. E enfim a derradeira pergunta, que dia é hoje. E ali ficou, suspensa nas respostas dadas, se calhar à espera de quem iria passar a seguir para recomeçar a chamar, enquanto o benemérito foi à sua vida de dias de semana agendados ao pormenor.
É esta a existência daquela mulher nos últimos anos da sua vida, agarrada ao postigo como se estivesse presa do lado de dentro, ou como se quisesse fazer dele tábua de salvação. Entre uma coisa e outra, venha o Diabo e escolha. E já agora quando vier, que lhe responda com simpatia à pergunta, que dia é hoje. De certeza absoluta que quando o vir, é o que ela terá para lhe perguntar.
4 comentários:
A Blimunda no seu melhor! :)
Obrigada, e coiso e tal!...
Tocante, mais ainda para quem já lá passou e foi alvo do mesmo cenário e da mesma pergunta.
A vontade é de mudança, que de imediato se crê ser para melhorar as condições daquele ser humano, mas fica sempre uma dúvida, seria melhor? Seremos nós os necessários àquela senhora, ou é ela que é necessária para que se pare da correria, da agenda, da nossa loucura, para dar atenção à dela.
Do seu postigo terá com quase toda a certeza, ao longo deste tempo, o melhor estudo sobre o ser humano, no seu melhor e no seu pior.
É na forma como respondemos e tratamos dos outros, mais ou menos loucos,que mostramos o melhor e o pior de cada um de nós.
Hoje é Sexta Feira.
até me vieram as lágrimas aos olhos... toca-me a solidao dos velhinhos, os nossos velhinhos..o nosso futuro..espero que não!!
Enviar um comentário