Era um homem como outro qualquer, com virtudes e defeitos, estes mais salientes pelo azedume próprio da idade, aquelas porém fazendo-se notar apesar deles e dando conta do seu verdadeiro modo de ser. Um homem banal, que havia já cumprido a sua vida, e gozava agora o passar de dias menos agitados, próprios para a sua idade. Mas este homem, silencioso nas suas reflexões e receios, sabia para onde o levavam aqueles agradáveis dias por preencher, e embora o seu corpo pedisse já pelo merecido descanso, a cabeça segredava-lhe lá de dentro que se parasse, morria. A cabeça daquele homem velho ainda não sabia o que fazer à morte. Por isso, o homem velho lia.
Sentava-se à janela e lia muitos livros, gostava dos clássicos (afinal era um homem velho), dizia que Júlio Verne era o melhor autor de sempre. Quando não tinha nada novo para ler, relia os livros do Júlio Verne. E para se alimentar de novas leituras, pedia à filha que lhe trouxesse livros, daqueles que ela não tinha tempo para ler porque vivia ainda num tempo em que os dias eram muito agitados e à sua cabeça nem lhe ocorriam cogitações que tivessem a morte como possibilidade.
A filha gostava de ver o homem velho a ler à janela. Olhava para as suas prateleiras e escolhia livros para lhe levar, tinha muitos, mas com o passar do tempo já todos haviam sido lidos. No entanto, era preciso continuar a alimentar a cabeça do homem velho com livros, porque aquela leitura para passar o tempo era a chave que fazia com que o tempo não passasse tão depressa. Então um dia a filha, que muito estimava o seu pai e queria que ele vivesse para sempre, começou a comprar novos livros que lhe agradariam a si própria ler, mas que não lia, por causa da agitação dos seus dias. E foi assim que, por muitos e muitos anos, o homem velho foi descobrindo antes dela a magia daqueles livros que serviam para prolongar a vida, ocupando depois o seu lugar nas prateleiras. Aqueles livros tornaram-se também num excelente tema de conversa e de partilha, deste não gostei, aquele é interessante, este já podes levar, li-o em dois dias, não conseguia parar.
Quando enfim a lógica da vida se impôs, que é como quem diz, a morte chegou e levou o homem velho, a filha estava grata aos livros por cada minuto a mais de vida plena que o seu pai tinha alcançado com a ajuda deles. É claro que os livros não conseguiram, nem a isso estavam obrigados, preencher o imenso vazio que se instalou com a morte do homem velho, e que todos os que o amaram vieram a descobrir dentro de si próprios. A mesma lógica de vida fez novamente o seu papel, e apesar do vazio, ou melhor, levando-o o consigo para sempre, todos seguiram com os seus assuntos. Ficaram os livros, à espera.
Chegou enfim o tempo em que a filha se tornou ela própria numa mulher velha, de dias pouco agitados. Como quem regressa à companhia de velhos amigos, voltou a percorrer com os dedos as suas prateleiras, pejadas de livros dos quais apenas tinha ouvido falar. A sua cabeça dizia-lhe baixinho que se parasse, morria. Os livros ali estavam, para que se alimentasse deles.
Segura de que a vida ainda tinha muita coisa nova para lhe dar a descobrir, e que a morte tinha ainda que esperar que terminasse a leitura de muitos milhares de páginas, sentou-se à janela, colocou os óculos e começou a ler.
4 comentários:
Muito bonito! Comovente mesmo. É seu?
Ao lê-lo imaginava que quando ela começasse a ler os livros que seu pai já devorara encontraria comentários e "recados" deixados por ele...
Caro Leãozinho,
Muito obrigada, é meu de facto.
Mas a ideia dos recados é muito bonita, também. ;-)
Lindo!
(a ideia dos apontamentos nas páginas também me passou pela cabeça :) )
:) Muito bonito, o texto.
Eu gostaria de poder preencher os meus dias com livros mas, por enquanto, ainda tenho essa vida agitada que não o permite.
Espero que não te importes om a invasão do blog...o nome chamou-me a atenção, por ser uma personagem que me marcou muito, pela positiva :)
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