terça-feira, maio 26, 2009

The woman who can't be moved *

Não gosta da canção. Acha a ridícula, irrita-a. A ideia de alguém que cristaliza a própria vida enquanto o outro segue em frente, eternamente à espera do especial favor de ser amado, a si não lhe parece romantismo. Parece-lhe, isso sim, algo muito, muito estúpido.

Quando passa na rádio, muda de estação. É que não suporta ouvir aqueles versos, declamados por quem afirma não ter escolha e nada mais lhe restar a não ser esperar. "How can I move on when I'm still enlove with you". Desprezível. Seguir em frente não é uma opção, é uma inevitabilidade, que palermice vem a ser esta. E aliás, ninguém merece não viver a sua vida.

No correr dos seus dias não podia estar mais longe desta utopia romântica que a canção apregoa. Buraco no seu mundo uma ova, prefere sem dúvida os buracos nos sapatos. Ninguém ama assim, um amor assim não existe, ponto final. Se existisse seria ainda mais ridículo do que todas as cartas de amor ridículas do Fernando Pessoa, mais trágico do que a mais trágica das tragédias de Shakespeare, e toda a gente sabe que isso não é possível. Este não-sei-quantos que inventou esta cançãozeca (que daqui a dois dias já ninguém se lembra quem é), não se vai com certeza comparar a verdadeiros entendidos destas coisas do amor e do romantismo, como são Fernando Pessoa ou Shakespeare, e isto só para dar dois nomes, haja ordem nisto, quer dizer.

A esquina onde o encontrou pela primeira vez, já não se lembra onde é, nem lhe interessa. Não pretende acampar lá nem sonha com o dia em que a ele lhe dê jeito voltar ao mesmo local de sempre. Não lhe oferece de bandeja essa satisfação. Segue em frente, todos os dias um lugar diferente, há os amigos, há coisas para fazer no trabalho e há as coisas para fazer nos tempos livres, há namorados novos, e quando não os há, há ela própria bastando-se a si mesma com tudo o que faz e que construiu, depois que ele a deixou parada numa esquina igual àquela em que, o tal homenzinho idiota, está parado à espera.

Um amor assim não existe. É por isso que odeia a tal canção, e é isto que grita à parte de si que está emparedada no fundo da masmorra, no buraco mais fundo e obscuro de si própria. Que um amor assim não existe.

Esse eu que está encarcerado, de tanto ouvir falar no ridículo do amor, acabará por morrer à fome e um dia será apenas mais um cadáver arrumado num armário. O eu encarcerado é aquele que está disposto a esperar. Mesmo sabendo que todos os outros eus caminham, espera, mesmo percebendo que não há esperança, espera, porque não encontra outro sentido em si mesmo que não seja esperar. Por enquanto, não se lhe pode dar a ouvir "the man who can't be moved".

De portas trancadas pela firmeza das suas convicções, ela não tem dúvidas que a canção é ridícula e fala de coisas que não existem. Porém, nas noites mais longas, a maldita música ecoa dentro de si mesma mais do que gostaria e muitas vezes fá-la rebolar na cama, sem que consiga dormir.

À superfície, surgem então as lágrimas que não se conseguem conter.

No fundo da masmorra, monta-se a tenda para mais uma noite passada ao relento.

* Inspirado em "The man who can't be moved", dos The Script,
e nos amores ridículos do dia-a-dia.

7 comentários:

XR disse...

Gostei muito deste texto.
Muitos(as) de nós têm de facto esqueletos no armário, prisioneiros que morreram de fome e abandono quando decidimos seguir em frente.

Só que de vez em quando alguma coisa nos remete para essas memórias emparedadas, esses momentos que não queríamos nos atormentassem. E eles ressuscitam. Sonhadores ingénuos. Desiludidos mas não desistentes. Dispostos a acampar numa esquina qualquer de saco-cama e fotografia na mão à espera do que não queremos, de facto, esperar mais.

Ridículos como as cartas de amor.
Agora vou ali dar uma cacetada ao meu fantasma e já volto. Estou farta de o ouvir cantar essa canção.

Mag disse...

Blimunda, cheguei aqui por mão da XR e dei logo de caras com este texto magnífico...
Aliás, inspirou-me para escrever no meu cantinho (espero que não te importes...)
Bj

blimunda sete luas disse...

Cara XR,
Esqueletos no armário, quem os não tem?... ;-)

Vocas disse...

E eu cheguei aqui via Mag e não pude deixar de comentar... há sempre um momento (ou vários) na vida de todos nós, em que "How can i go away if I'm still in love with...".(...) A questão é o tempo. O tempo que essa fase dura. E o tempo que perdemos se for longo demais.
Gostei do teu blogue.

Anónimo disse...

Eu acredito na letra música. Acho perfeitamente normal uma pessoa não conseguir seguir em frente se ainda gosta de outra. E por muito que custe pensar assim, é a realidade. A frieza do "isso é ridículo" não leva a lado nenhum, porque a voz ecoa no escuro da noite "how can I move on, when I'm still in love with you?"

Anónimo disse...

Não é "woman" mas "men"

blimunda sete luas disse...

Caro(a) anónimo, obrigada pelo reparo, mas o título é intencional. Era mesmo "woman" que eu queria dizer. :)