Vivi toda a minha infância e adolescência numa casa pequenina e muito degradada, que hoje em dia já não existe, e da qual guardo as melhores e as piores lembranças. Recordo-me perfeitamente da pior de todas: a água que teimava em pingar do tecto do meu quarto, por cima da minha cabeça, enquanto eu dormia. Até ao ponto de um fenómeno ainda hoje por explicar, que foi o de, desviada a cama no minúsculo quarto para evitar a goteira por cima da cabeceira, a água deixasse de aparecer do lugar onde aparecia de início para voltar, teimosamente, a pingar por cima da almofada.
Lembro-me doutra ocasião em que foi preciso abrir sulcos no chão (dessa vez resolveu aparecer por esse lado) e da sensação de desalento e desconsolo que era ver aqueles circuitos de água a fazer-me sentir que estava pouco menos do que na rua. E lembro-me do rosto do meu pai nessa época, e dele a subir ao telhado para ver se havia telhas partidas, e a pôr lonas por cima do telhado, e a cavar os sulcos no chão de cimento. Ele punha uma expressão que eu não entendia na altura mas que hoje percebo melhor, que era a cara de um pai que tinha uma casa que metia água pelo quarto da filha, e isso ser o melhor que se podia arranjar.
Agora que penso nisso acho que me ficou alguma coisa de trauma em relação a esses tempos. Naquela altura, o mais simples aguaceiro representava para mim algo de negativo e motivo de angústia, e ficava ali a torcer para que parasse depressa, antes que descobrisse o caminho para o meu espaço. Esta angústia permanece até hoje. Não gosto de chuva. Bole-me com os nervos. E acho que vai ser assim para todo o sempre.
Curiosamente, ainda não consegui ter nenhuma casa onde o problema de lá entrar água não se coloque. Na que tinha anteriormente, a marquise mal amanhada e já ressequida pelo sol, deixava entrar água quando ela vinha tocada a vento. Era um desconsolo. Actualmente, são os bidés das casas de banho que devem ter alguma coisa nos canos a entupir, e quando são usados, lá vem uma pequena, porém irritante, quantidade de água, destruir o meu refúgio, que ser quer aconchegado e principalmente, seco.
(Que isto são doces comparado com o que aconteceu a muitas pessoas hoje. Longe de mim. Mal por mal, nunca tive que ir com a roupa do corpo dormir sabe-se lá onde. Adiante.)
Hoje também foi dia de muita água. Sozinha dentro do carro, passei lençóis de água sempre a acelerar e a rezar para que o carro não me falhasse, levei horas intermináveis nas filas de trânsito, e enquanto olhava para fora e via carros e mais carros, toda a gente parada, e a chuva, maldita chuva cada vez mais violenta, o sentimento que surgiu foi o daquela mesma angústia do tempo em que acordava de noite, com a água a molhar-me a cama.
Passada a borrasca, paragem na casa dos pais para cumprimentar e contar as desventuras do dia. Manifesto a apreensão, de certeza que infundada, de que ao longo do dia, a água tenha subido para dentro de casa, afinal é um rés-do-chão e os bidés andam armados em parvos. Falo no assunto de modo despreocupado, é só um pequeno receio, nada objectivo o faz esperar, a casa é quase nova. Mas sei que o que fala cá mais fundo é esta angústia que nunca mais desapareceu totalmente, e me faz andar de janela em janela sempre que começa a cair com mais força, pelo sim pelo não.
Já de mão na porta para sair, o pedido veio da sala inevitável, "depois quando chegares, diz qualquer coisa". Quando cheguei as apreensões dissiparam-se e fui de imediato dissipar as dele, que estava tudo bem, fica descansado.
De maneiras que por hoje, pai, apesar da muita água que caiu, podemos mandar calar o nosso pequeno trauma. A angústia que ambos conhecemos tão bem vai poder dormir descansada, porque a água permanece do lado de fora, enquanto que nós estamos secos e a salvo, do lado de dentro.
9 comentários:
Sozinha dentro do carro, passei lençóis de água sempre a acelerar
Desculparás o eventual ar paternalista que este comentário poderá parecer ter mas não me consigo calar...
Acelerar sobre um lençol de água é um disparate quase criminoso. Por várias razões: Porque a movimentação da água é maior (o vazio central que a aceleração provoca, causa um refluxo da água para o centro do canal deixado pelo carro) e se a ideia era evitar que a água chegasse ao motor, já foi por água abaixo. Além disso, não há componentes eléctricos na parte inferior do motor pelo que a preocupação é um bocado infundada. Se tiveres água na parte eléctrica isso quer dizer que já tens água pelos joelhos, o que não me parece muito saudável. Um lençol de água esconde por vezes surpresas MUITO desagradáveis. Imaginas o efeito que terá no teu carro o facto de passares por cima de uma tampa de esgoto aberta? Mais do que no teu carro, imaginas o efeito que poderá ter em ti? Lençóis de água significam aqua planning se forem pequenos, significam um desastre à espera de acontecer se forem passados a acelerar. Por isso aceita um conselho: Lençóis de água evitam-se se possível, se tal não for possível devem ser feitas a baixa velocidade e de olho bem aberto a turbulências ou remoinhos bem marcados (significam buracos relevantes).
De resto o teu texto fez-me sorrir, também vivi demasiados anos em habitação degradada e há marcas que ficam para sempre.
:)
Pois! Assim como assim, junto-me ao Pedro e à Blimunda! Mas isso já passou!
E sim, o Pedro tem razão! Nada de acelarar à passagem de lencóis de água! :)*
Hum, não me expliquei bem. Acelerar no sentido de manter o pé sempre no acelerador, mas ia em primeira! A baixa velocidade ficou salvaguardada, e por acaso sempre me disseram que aquele movimento de subir o pé do acelerador e meter outra mudança era arriscado, no meio de um lençol de água, que o carro pode afogar.
Foi nesse sentido, de resto, aquele lençol de água impossibilitava qualquer velocidade cima dos 10 Kms! :)
gtei mt do texto :)
tb n gt de chuva, trovoadas então, mt pior...tb me entrava água pelas janelas de casa e tinha q andar c os meus pais c panos e baldes a limpar...mas n em cima da cama...
bj meu
Como te compreendo! Acontece isso nos meus Pais mas por culpa de entupimentos no prédio vizinho! Aquela noite foi passada de olhos abertos e a rezar ao Sao Pedro que cá por baixo ja chegava de tanta água!
Eu compreendo essa angústia da água nos invadir o nosso espaço...também o senti quando era puto...a água mts vezes roubou me o conforto, uma pequena frincha era o suficiente para a luz ser desligada com medo de curtos circuitos e lá se ia a Tv,a música,a quelas "coisinhas" boas que me aqueceram a minha infância, mas dps tudo passava o sol raiava e a goteira arranjava se...agora quando chove penso nos desgraçados que têm goteiras e sofrem com a chuva....e eu no meu Lap top rio me não de gozo, mas do conforto que diariamente dou à minha pequena família, não esquecendo o passado, precavendo o futuro e torcendo para que cada dia seja melhor que o outro!!! até amanhã....
Ao que parece todos temos um passado de água dentro de casa, sem ser nos locais devidos. Que bons são os nossos construtores civis... Em criança tive a sorte de crescer com conforto. Só depois de casar é que fui morar para uma casa velha que se revelou pior do que parecia (e já parecia má!). Desde limpar paredes com toalhas, a ver sair água do esgoto do chão tive um pouco de tudo. Até direito numa das vezes a escorregar e cair de costas num banho de esgoto e lama, um verdadeiro banho de merda!!!
E tb eu pensava com tristeza que tinha a minha filha a crescer ali no meio e com problemas respiratórios.
Agora é tudo ao contrário. Vivo numa casa grande e nova, com jardim e as filhas a crescer com tudo de bom. Até com uns pais que lhes fazem perceber a sorte que têm.
Bli: texto bom de ler, que nos levou aos sonhos e tristezas de uma menina Bli de muitos anos atrás. Por ironia eu ... adoro a chuva, tempos lembrados em que quando ela era forte eu lhe mostrava meu canto fechado, iluminado e quente onde devorava BD's e outros que tais. Mas qualquer coisa teria de me calhar. A louça que por vezes se amontoava numa cozinha que não dava vazão a uma casa de gente muita, por vezes pouco interessada. Quando hoje, por aqui e com os meus filhos, acaba o jantar, eles vão lavar os dentes e eu me preparo para um café e cigarro, já tudo foi lavado, escorre ali ao lado, arrumado será após a ultima passita !
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