sexta-feira, junho 18, 2010

1922-2010


Julgo já ter dito em momento anterior que no ano de 1988, para o bem e para o mal, me transformei eu na pessoa que sou hoje, e a isso não foram alheios os professores que me calharam naquele ano escolar, nem tão pouco os livros que na altura me pus a ler. Foi numa das muitas incursões que nessa altura fiz à biblioteca da minha escola que, aos 16 anos de idade, li pela primeira vez O Memorial do Convento.

Como quem roda a chave numa fechadura, aquele livro abriu portas dentro da minha cabeça que eu não sabia que existiam. Hoje, sentada aqui no meu escritório de casa, olho para a prateleira onde tenho perfiladas as obras do José Saramago que pela minha vida fora têm continuado a abrir-me portas e janelas na cabeça: Terra do Pecado (Romance); Os Poemas Possíveis (Poesia); Provavelmente Alegria (Poesia); Deste Mundo e do Outro (Crónicas); A Bagagem do Viajante (Crónicas); O Ano de 1993 (Conto); Manual de Pintura e Caligrafia (Romance); Objecto Quase (Contos); A Noite (Teatro); Levantado do Chão (Romance); Que Farei com Este livro? (Teatro); Viagem a Portugal (Crónicas); Memorial do Convento (Romance); O Ano da Morte de Ricardo Reis (Romance); A Jangada de Pedra (Romance); A Segunda Vida de Francisco de Assis (Teatro); História do Cerco de Lisboa (Romance); O Evangelho Segundo Jesus Cristo (Romance); In Nomine Dei (Teatro); Cadernos de Lanzarote I a V (diário); Ensaio Sobre a Cegueira (Romance); Todos os Nomes (Romance); Discursos de Estocolmo; O Conto da Ilha Desconhecida (Conto); Folhas Políticas 1976-1998 (Crónicas); A Caverna (Romance); A Maior Flor do Mundo (Conto); O Homem Duplicado (Romance); Ensaio sobre a Lucidez (Romance); Don Giovanni ou O dissoluto absolvido (Teatro); As Intermitências da Morte (Romance); As Pequenas Memórias (Memórias); A Viagem do Elefante (Romance); O Caderno (Blog); Caim (Romance). Olho para todas estas obras e pergunto-me se, por esta altura, já terão decidido ou não decretar o luto nacional. Arrisco-me a pensar que o próprio José Saramago daria pouco ou nenhum valor a tal decisão, vá ela num sentido ou noutro. Imagino-o a dizer aos senhores ministros que não se incomodem em reunir-se só por causa da simples morte de um escritor, ainda para mais quando, por este dias, têm tantas coisas importantes em que pensar.

Volto aos livros. Ao primeiro que li, O Memorial do Convento. Que reli vezes e vezes sem conta e que tantas vezes me fez rir e chorar. Recordo como me emocionei há uns anos atrás quando, no Palácio de Mafra, assisti a esta história contada em Teatro, essa mesma história que vi há poucos dias, numa Escola Secundária, representada por jovens alunos que ainda apenas puderam dizer as palavras, sem maturidade para compreender tudo o que elas significam. Mas lá chegarão, estou certa, assim não lhes falte a vontade que põe passarolas a voar.

Volto ao Levantado do Chão, que me ensinou coisas de um tempo que os meus olhos já não viram. Coisas de quando estivemos atirados ao chão e tivemos que nos levantar. Sim, é claro, é panfletário, o homem eram comunista. Pois era. Mas "se podes olhar, vê. Se podes ver, repara" (Ensaio sobre a Cegueira). A pensar pela minha cabeça, ouvi a história que o Saramago me contou.

Volto ao Evangelho Segundo Jesus Cristo, tal como os anteriores, colado na lombada com fita cola, páginas amarelas e gastas do uso. Ao Ensaio Sobre a Cegueira, assinado pelo próprio a 26 de Outubro de 1995, guardo-o com carinho, mesmo não sendo muito dada a autógrafos.

Já se sabe que mais tarde ou mais cedo todos morremos, e hoje morreu ele. Então eu acho que a maior homenagem que se lhe pode prestar é lê-lo, sem complexos de ordem política ou religiosa, sem puritanismos de linguística e de amor aos pontos e às vírgulas e aos travessões e aos parágrafos. Porque o que vai naquelas páginas é muito superior a tudo isso.

"Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes." (História do Cerco de Lisboa). Julgo que não se resignou ele, isso não se lhe poderá apontar. A sua herança, para todos quantos apreciem a sua obra, será talvez esta condição de não-resignação, mesmo que por vezes a resignação fosse o mais dócil dos caminhos.

Não falemos por isso da imortalidade da sua obra, do valioso património cultural que deixa a este País, da referência literária mundial que representa, ou outras eventuais palavras de peso, com todas as vírgulas nos seus devidos lugares (nada de maluqueiras à Saramago), que amplamente serão ditas pelos próximos dias afora.

Quanto a mim, prefiro recordar-me de mim própria com os tais 16 anos, sentada cá fora nos intervalos das aulas a ler o Memorial do Convento, deslumbrada com os mundos que tinha por descobrir. Prefiro falar das vontades.

"Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira (...)" (Memorial do Convento).

Para o José Saramago

3 comentários:

Pedro Aniceto disse...

Eu, hoje, chorei.

Anónimo disse...

AGORA É QUE ESSE SENHOR VAI PRESTAR CONTAS!!!:)))

Anónimo disse...

Umas pessoas morrem. Outras não.