sexta-feira, fevereiro 11, 2011

Meio comida por lobos da alsácia

Estamos em 2052. Tenho 80 anos de idade. Nunca casei, nunca tive filhos. Os pais desapareceram há muito, a irmã já falecida também. Restam dois sobrinhos, com um deles não falo há cerca de 50 anos, outra perdi-lhe o rasto, falámos pela última vez no Natal, ao telefone, está tudo bem, está, e contigo, também, cá vamos. Estou sozinha. E então? Não estamos todos?

A vista já me cansa muito, não consigo estar muito tempo ao computador, onde há muitos anos atrás comunicava para o mundo inteiro que me quisesse ouvir, e que eu ouvia sempre que queria escutar. Estou sempre a enganar-me a digitar as letras e isso irrita-me, eu que dantes conseguia que os dedos corressem velozes e certeiros pelo teclado, à mesma velocidade do pensamento. A internet é demasiado rápida e já me cansa tanta informação.

Mas continuo amiga das tecnologias. Conforme fui envelhecendo tratei de pôr as facturas todas a descontar directamente na conta bancária. A pensão vai para lá todos os meses, também. A casa ficou paga no ano em que comemorei 74 anos de idade, grande conquista, nesse ano fiz uma viagem à Escócia. Sozinha.

Agora já não viajo. Estou em casa. Resisti até ao limite à ida para aquele sítio a que chamam de "lar", um dia destes irei, tenho dito sempre, mas nunca fui. Não conheço os meus vizinhos. Eles também não me conhecem a mim.

Daqui a uns anos, daqui a uns dias, horas, minutos, algo irá acontecer-me e serei mais uma versão patética dos piores receios da Bridget Jones, que temia ser encontrada morta no chão do apartamento, meio comida por lobos da alsácia. Presunçosa rapariga! Até na morte se achava uma grande coisa, porque haveriam de ser lobos da alsácia, e não vulgares cães de rua?

A mim, quando me acontecer isso, nem cães para me virem comer. Não tenho bichos. Melhor assim. A mim, quando me acontecer, continuarei a pagar as minhas dívidas a tempo e horas, muito tempo poderá passar até que alguém, se é que alguém, dê pela minha falta. Até que finalmente alguém diga, olha, está morta, e então sim, passar realmente e estar. Porque até que alguém o diga não é claro que verdadeiramente o esteja.

Estarei morta? Se calhar já estou morta. E então? Não estaremos todos?

4 comentários:

Francesca disse...

é melhor não tentarmos imaginar o futuro.
Para quê? Para ficarmos ainda mais deprimidos do que agora, nesta sociedade estranha, consumista e de se parecer o que se não é?
Deixa-te disso e bola para a frente rapariga!

http://mefrancesca.blogspot.com

Anónimo disse...

Quem você gostaria de ser no futuro? Viva de forma coerente com as suas aspirações afinal você é responsável pelo seu destino.

O homem não é senão o seu projeto, e só existe na medida em que se realiza. ( Sartre )

CB disse...

Se Você cá estiver ao 74 anos, ir á Escócia sozinha já é um pouco arrojado. Ora bem, com as artroses, talvez o coração também já esteja lá aquela coisa...espero que os diabetes também não andem por aí...olhando que você é uma mulher moderna, espero que antes se inscreva numa associação qualquer para velhos e que no mínimo vá acompanhada. Pelo menos se lhe der um "treque" não estará sozinha especialmente na Escócia em que você ira compreender que e seu inglês de escola não lhe serve para nada pois nem os ingleses os percebem.Quanto ao ficar sozinha, poderia apadrinhar ou tentar adoptar uma criança mais crescida, tem tantas precisando de uma mãe daquelas que já ninguém quer porque já são grandes mas que viram grandes pessoas e muito agradecidas a Deus por finalmente terem alguém que as ame. Muito mais dóceis e obedientes que um filho biologico...que tal falar bom dia e boa tarde para os vizinhos, mesmo aqueles que não gosta muito? A simpatia conquista muita gente e também não é preciso dar muita corda. No meu prédio aqui em Lisboa as pessoas têm medo de dizer bom dia, um habito comum só aqui em Lisboa. No Algarve tenho um apartamento em que vive tanta gente e em que todo o mundo se cumprimenta. Não somos bichos, podemos mudar a situação á nossa volta...é uma questão de mentalidade para que 2054 não tenha aquele futuro. Ainda vai a tempo não se esqueça de que o mal da nossa sociedade de hoje é exactamente esse...em nome de uma independência em jovens morrerem sós no futuro. Somos nós que o construímos ou o destruímos por puro egoísmo o nosso futuro. Espero vê-la descrever um futuro mais simpático,com melhores soluções. É aos trinta e tal e aos quarenta que nós mulheres nos lembramos que começa a ser tarde para ser mães e tudo em nome de uma profissão de um bom corpo de uma independência. Eu fui mãe bem jovem, aos 17 anos e nem sempre tudo corre bem, estive em coma sobrevive, separei-me,continuei meus estudos voltei na casar, tornei-me empresária voltei a ter filhos em risco sempre fiz ginástica e mantive um óptimo corpo, verdade seja tida não estou nada arrependida por ter começado cedo minha vida, porque aprendi muito, aos trinta meus filhos já comiam pão com côdea e tinha todos dentes, hoje eu estou cheia de problemas de saúde, ainda me sinto uma mulher moderna, doente e activa, movida pela minha força e sempre com minhas filhas por perto a dar-me seu amor nem que seja pelo telefono.

blimunda sete luas disse...

Cara CB,

Parabéns pela força e coragem na sua vida, e obrigada pelo seu contributo a este texto. Ele foi inspirado no episódio de que todo o Portugal falou mas que já todo o Portugal esqueceu, da idosa que esteve 9 anos morta em casa, e que me impressionou bastante.

Esta é uma visão distópica de um futuro que procurou demonstrar que aquilo que aconteceu àquela senhora pode muito bem suceder a qualquer outra pessoa, e é culpa de nós todos. Minha também, obviamente.

Individualmente, espero é claro que o que vou construindo, ao nível dos afectos, me livre desse fim tão triste. Mas não me passaria pela cabeça adoptar uma criança só para não morrer sozinha. Até porque adoptar uma criança, ou até ter um filho biológico, não é garante nenhum de nos livrarmos da solidão na velhice.

Posto isto, mais uma vez obrigada e volte sempre!