Os textos, tal como tudo o resto, foram construídos colectivamente. "Cada um de nós é um rio. Cada um de nós é um cais.", foi um pedaço que integrou um dos momentos do espectáculo, uma ideia que desenvolvi a partir da célebre citação de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."
Embora todo o texto seja talvez mais compreensível para quem esteve envolvido no projecto e conheça a terra, ainda assim deixo-o aqui na sua versão integral, mais que não seja porque, na sua conclusão final, podemos enquadrar a vida de qualquer um de nós:
CAIS 14
"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."
O Cais 14, em Alhandra, é a margem que comprime o Tejo e o empurra para o seu destino. Vivem assim enlaçados, o rio e o Cais, como se de um namoro se tratasse.
Este namoro entre o rio que tudo arrasta e o Cais que o comprime construiu a vida de muitas pessoas ao longo dos tempos.À beira deste Cais construíram-se as vidas de agricultores e pescadores, atletas e escritores, músicos, operários, homens que nunca foram meninos, mulheres que sempre tiveram força.
Todos aqui vieram em algum momento. Entraram nos barcos e lançaram as redes ao rio. Nadaram para vencer o medo, para vencer o frio, para vencer o rio. Vieram ao nascer do sol para lavar a roupa, chegaram ao fim do dia para chorar a dureza da vida. Vieram durante a noite para conversar, conspirar, rir, cantar e dançar, dormir. Amar.
A partir do Cais 14, os homens e as mulheres buscaram no rio o seu sustento, mas também a sua inspiração. Para isso invocavam as Tágides, que dizem ser as ninfas do Tejo. O alento dos mortais sempre pareceu mais fácil com a ajuda da divindade. E por isso elas existem, e são belas, e também elas gostam de se sentar no Cais 14 a contemplar o rio.
Mas de onde vem, afinal, a inspiração? De onde vem o talento? De onde vem o alento para levantar todos os dias e trabalhar, construir a própria vida? Será que vem do rio, será que vem das ninfas?
Na verdade, tudo o que se constrói nasce da vontade dos homens e das mulheres. São essas vontades que ditam o que chega ao Cais e o que abandona o Cais. Foram essas vontades que construíram, junto ao rio, a casa da Música, do Teatro, do Desporto, da História. E o que existe mais, para além das vontades? Existe o riso. A esperança. A perseverança. A solidariedade. A dança. O olhar. O beijo. De tudo isto se fazem as vidas que chegam e partem do Cais 14.
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as vidas que em torno dele se constroem. Cada um de nós é um rio.
Cada um de nós é um Cais.
4 comentários:
Belas metáforas...
Obrigada, volte sempre! :-)
Todos os dias é um vai e vem, a vida se repete na estação, tem gente que chega pra ficar tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer ficar tem gente que vai e que voltar tem gente que veio só olhar tem gente a sorrir e a chorar... e assim chegar e partir são só dois lados da mesma viagem... o trem que chega é o mesmos trem da partida... a hora do encontro é também despedida, a plataforma desta estação é a vida deste meu lugar... é a vida, é a vida... ( música de Milton Nascimento)
cada um de nós é um trem e uma estação...
Obrigada, caro(a) anónimo(a), por me recordar desta canção tão bonita, e que realmente vai aqui muito bem. Volte sempre. :-)
Enviar um comentário