De quem és tu filha. A menina nasceu em noite
de lua nova, escura como breu. Foram tantas as trevas em volta que é justo
dizer-se que nessa noite não se deu à luz. Não se ouviram os gritos
desesperados do parto, não houve correria do quarto para a cozinha, ninguém
ouviu, ou o que é pior, ninguém quis ouvir. Maria pariu sozinha e em silêncio, de
cócoras sobre uma selha, conforme tinha visto fazer a outra a quem tinha sido
preciso ir ajudar. Às escuras, a bebé saiu do ventre materno e mergulhou no
fundo da selha para onde já tinham vertido as águas e o sangue que durante
meses a mantiveram viva e de boa saúde. Ninguém a amparou. Elisa ainda
despertou a tempo de ouvir os sons que a alertavam para que algo estava mal, mas
tarde demais os compreendeu, a criança afogou-se, disse a Maria para logo se
calar. Nasceu e morreu sem nome, sem pai, mãe, parentes. Nesta história, de
quem és tu filha é pergunta que eternamente ficará sem resposta.
Os donos da casa despertaram enfim, não
apenas do sono dormido, mas também daquele que os mantinha longe da realidade. Maria
e Elisa eram filhas de um homem chamado Manuel. Um homem do campo, ignorante e
sem maneiras, um bom filho de Deus, mas nem por isso menos consciente dos seus
deveres de pai. Para que se veja como às vezes se julgam erradamente as
pessoas, afinal foi a este homem sem instrução que se ouviram os primeiros
gritos de revolta perante o sucedido. Gritou com a filha que em silêncio parira
e em silêncio se mantinha, apenas olhando a selha onde permanecia o objecto da
sua culpa. De longe em longe lá conseguia distinguir os gritos do pai a
perguntar coisas, que de tão óbvias, nem tinham resposta possível. Porque tinha
ela feito semelhante coisa. Para quê esconder a gravidez, e pior, deixar morrer
assim uma criança. Que espécie de mulher era ela, que isto nem fora coisa de
gente, como pudera deixar cair a criança, nem os bichos renegam um gesto tão
simples, este de amparar a cria, que coisa horrível, e agora. Os gritos duraram
o seu tempo e depois cessaram, é assim com todas as coisas do mundo, sejam elas
uma gravidez, uma vida, uma dúvida, uma certeza, duram o que têm que durar,
depois cessam e tornam-se noutra coisa qualquer.
Reposto o silêncio, foi a vez da Maria o
quebrar, afinal alguma explicação tinha que surgir, e não apenas para os
outros, para si própria também. Maria falou de vergonha. De falta de coragem.
Do dinheiro que a família não tinha, e que tornavam impossível o casamento que
as boas regras impunham. Que alternativas existiam? Nenhumas. Não casar seria a
pior condenação de todas, mãe solteira, como poderia ela sair à rua, como
entraria na igreja, como enfrentaria os olhares inquisidores dos outros,
espreitando ao postigo sempre com uma pergunta a reclamar uma resposta, de quem
és tu filha, de quem és tu mãe, de quem és tu namorada, de que espécie és tu,
aqui detrás do nosso postigo que nos protege de todo o mal vamos encaixar-te
numa categoria qualquer, não teres nenhuma é que não pode ser, e então cá vai,
boa filha, mulher honrada, mãe solteira, mulher da vida, prostituta, a escolha
está feita, que Deus te perdoe e te afaste de nós.
É verdade, estas explicações não convencem
ninguém até hoje, mas talvez seja porque Maria acabou por falar mais para os
outros do que para si. Não consta que tenha dito, e se calhar nunca o pensou,
não quero ser mãe ainda, cada coisa a seu tempo e este não é ainda o meu tempo.
Maria deixou por dizer coisas chocantes como estas que se seguem, esta que aqui
jaz não é minha filha porque por muito tempo nem sabia que a tinha e depois de
saber nunca a desejei. Nunca foi minha porque se soubesse como tirá-la do meu
corpo tinha-a tirado há já muito tempo. Não é minha filha porque quando as mães
não o querem ser, aos filhos só lhes resta serem filhos de ninguém. Por aqui se
vêem os mistérios da vida. Um dia, muito para além do tempo em que decorre esta
história, um escritor dirá que onde nasce um filho nasce também uma mãe. Belas
e verdadeiras palavras serão. Menos belas, porém também verdadeiras, são estas
que resultam do que a Maria gostava de ter dito e não disse, que a mãe afinal só
nasce se for ela própria a desejá-lo. Já os filhos para nascerem, até onde
chega a sabedoria dos homens, nunca se ouviu dizer que a sua vontade conte para
alguma coisa.
Tudo isto são conjecturas, invenções, falsidades.
Regressemos aos factos, agora que terminaram as explicações e impera de novo o
silêncio. Aos pés de todos, o cadáver de uma recém-nascida sem nome. Mas já que
nos demos ao luxo de pôr explicações na boca da mãe, tenhamos também a ousadia
de baptizar a recém-nascida. Seja então Elisa o nome dela, por parte de uma tia
que se tivesse acordado mais cedo tudo teria sido diferente. Quem sabe, por
esta altura, talvez a noite e os corações não estivessem tão escurecidos, e a
criança não estivesse sendo tristemente apelidada de Elisa, filha de ninguém.
Próxima publicação: 01 de Outubro