segunda-feira, setembro 10, 2012

Elisa, filha de ninguém #1/7

O crime nunca foi denunciado. Não houve investigação policial. Se alguém houve que tenha desconfiado, visto ou ouvido dizer, nunca falou, calou-se para sempre. Esta história ficou retida no silêncio de todos quantos nela se envolveram, apenas sussurrada de algumas mães para algumas filhas, na urgência de contar o segredo da menina que da vida apenas soube o que foi nascer e morrer. Talvez porque chegou cedo demais, não teve direito a pertencer à família que mais tarde, aos que chegaram no tempo certo, soube criar e acarinhar. Foi há muitos anos atrás e os que viveram os acontecimentos já morreram todos.
 
A casa ainda lá está, recuperada por filhos, primeiro, depois por netos. É o melhor dos lugares para o descanso de fim-de-semana, e para isso mesmo lhes serve. A paisagem em volta é magnífica e o clima, apesar de sempre agressivo, seja Verão ou Inverno, traz aos corpos o vigor e a saúde próprios de tudo o que permanece em estado puro. São muito poucos os que sabem do que por lá se passou, e mesmo dos que chegaram a saber, já ninguém está para se lembrar disso. Esta casa de hoje em dia tem água e luz, máquinas para lavar, secar e cozinhar, chão de madeira e pedra, tapetes, camas e sofás. O quintal em torno dela está coberto por uma fresca manta verde onde se espojam primos e primas, brincadeiras alegres das crianças que são já o fruto da sexta geração desta família.
 
É uma aldeia igual às outras todas. Uma terra que se vestiu com ares de modernidade, aderiu ao conforto e nalguns casos mesmo ao luxo, em tudo diferente da época a que remonta a ocorrência, registe-se, primeira década do século vinte, aos anos que isto foi. Grandes diferenças se encontram realmente, saltam à vista, porém aos que têm um olhar mais profundo, seja por hábito ou porque a sua natureza não lhes permite olhar de outra forma, não deixarão de notar o que permanece sempre igual, e não apenas nos lugares, mas sobretudo nas pessoas, que é quem faz os lugares serem o que são.
 
Observemos. Nesta rua principal, que é mais ou menos a única, vemos passar o tractor, o burro, a carroça, em sã convivência com os carros e motas de alta cilindrada, estes últimos exibindo-se aos Sábados e Domingos, eclipsando-se inevitavelmente durante a semana. Contra-argumentemos então, tudo o que foi antes dito não faz sentido, está de facto diferente a aldeia, pertence sem dúvida ao século vinte e um. Porém agita-se o vento ao final da tarde e entra pelas narinas o cheiro dos porcos e das uvas fermentadas. Respiremos fundo para que se nos encha o peito com o cheiro do lume, aceso assim que o sol se põe. É que as noites, por estes lados, até em pleno Verão podem ser de gelar os ossos. Olhemos no fundo dos olhos dos velhos e das velhas vestidos de negro, que se quedam à porta de casa ou das adegas, de mão na vista protegendo do sol para melhor verem quem passa, e inquietos, vejamos enfim um modo de olhar que é o mesmo desde o início dos tempos, sintamos a modernidade à nossa volta a perder o seu brilho e vigor, afinal não passas de pó e ao pó tornarás. De quem és tu filha?, perguntam sem cerimónias. Quem se ofende com a pergunta é porque não é deste mundo.

Próxima publicação: 17 de Setembro

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