O crime nunca
foi denunciado. Não houve investigação policial. Se alguém houve que tenha
desconfiado, visto ou ouvido dizer, nunca falou, calou-se para sempre. Esta
história ficou retida no silêncio de todos quantos nela se envolveram, apenas sussurrada
de algumas mães para algumas filhas, na urgência de contar o segredo da menina
que da vida apenas soube o que foi nascer e morrer. Talvez porque chegou cedo
demais, não teve direito a pertencer à família que mais tarde, aos que chegaram
no tempo certo, soube criar e acarinhar. Foi há muitos anos atrás e os que
viveram os acontecimentos já morreram todos.
A casa ainda lá
está, recuperada por filhos, primeiro, depois por netos. É o melhor dos lugares
para o descanso de fim-de-semana, e para isso mesmo lhes serve. A paisagem em
volta é magnífica e o clima, apesar de sempre agressivo, seja Verão ou Inverno,
traz aos corpos o vigor e a saúde próprios de tudo o que permanece em estado puro.
São muito poucos os que sabem do que por lá se passou, e mesmo dos que chegaram
a saber, já ninguém está para se lembrar disso. Esta casa de hoje em dia tem
água e luz, máquinas para lavar, secar e cozinhar, chão de madeira e pedra, tapetes,
camas e sofás. O quintal em torno dela está coberto por uma fresca manta verde
onde se espojam primos e primas, brincadeiras alegres das crianças que são já o
fruto da sexta geração desta família.
É uma aldeia igual
às outras todas. Uma terra que se vestiu com ares de modernidade, aderiu ao
conforto e nalguns casos mesmo ao luxo, em tudo diferente da época a que remonta
a ocorrência, registe-se, primeira década do século vinte, aos anos que isto
foi. Grandes diferenças se encontram realmente, saltam à vista, porém aos que
têm um olhar mais profundo, seja por hábito ou porque a sua natureza não lhes
permite olhar de outra forma, não deixarão de notar o que permanece sempre
igual, e não apenas nos lugares, mas sobretudo nas pessoas, que é quem faz os
lugares serem o que são.
Observemos. Nesta rua principal, que é mais ou menos a única, vemos
passar o tractor, o burro, a carroça, em sã convivência com os carros e motas
de alta cilindrada, estes últimos exibindo-se aos Sábados e Domingos, eclipsando-se
inevitavelmente durante a semana. Contra-argumentemos então, tudo o que foi
antes dito não faz sentido, está de facto diferente a aldeia, pertence sem
dúvida ao século vinte e um. Porém agita-se o vento ao final da tarde e entra
pelas narinas o cheiro dos porcos e das uvas fermentadas. Respiremos fundo para
que se nos encha o peito com o cheiro do lume, aceso assim que o sol se põe. É
que as noites, por estes lados, até em pleno Verão podem ser de gelar os ossos. Olhemos
no fundo dos olhos dos velhos e das velhas vestidos de negro, que se quedam à
porta de casa ou das adegas, de mão na vista protegendo do sol para melhor
verem quem passa, e inquietos, vejamos enfim um modo de olhar que é o mesmo
desde o início dos tempos, sintamos a modernidade à nossa volta a perder o seu
brilho e vigor, afinal não passas de pó e ao pó tornarás. De quem és tu
filha?, perguntam sem cerimónias. Quem se ofende com a pergunta é porque não é
deste mundo.
Próxima publicação: 17 de Setembro
Sem comentários:
Enviar um comentário