quarta-feira, setembro 14, 2005

Emancipação

Quando casou ia virgem.

Hoje em dia mantém apenas uma união sem factos, e um dia-a-dia feito a pensar nos outros. Vive num lugar que entende a infelicidade e a abnegação como coisa natural e própria da condição feminina. Aos olhos dos que a rodeiam tem um bom marido. Tem trabalhado toda a vida pela família e vem sempre dormir a casa.

Não interessa que regresse sempre bêbado. Não interessa que não a acompanhe em nada. Que a envergonhe. Não interessa.

E a bem da verdade, também já nada disso lhe interessa, essa ferida há muito tempo que secou. Muito gostava ela de o ver pelas costas. Mas ele ali está, estendido no sofá da sala da casa que o pai e a mãe lhe deram. Na casa que é dela, mas que ele não deixa, se calhar porque não tem para onde ir.

As filhas estão criadas, bem casadas, deseja-lhes melhor sorte que a sua. Em momentos de desespero chegou a dizer que, no dia em que visse as duas fora de casa, sairia ela de seguida. Mas a casa é dela. A mãe ainda lá mora. E ela ainda não teve coragem de bater com a porta.

Está apaixonada. Um amor duplamente pecaminoso, que os compadres são o mesmo que família. Com mais de quarenta anos de idade, descobriu-se em prazeres que o marido nunca lhe soube proporcionar, na pressa de alcançar o seu próprio. Descobriu o afecto. O encanto. O cuidado. Este homem está disposto a tudo por ela, tudo. Excepto esperar para sempre.

A vida não pára. Não decidir é uma decisão também, e não há decisões sem consequências. Ela sabe. Sabe que se sair por aquela porta terá todo o seu mundo a apontar-lhe o dedo, começando pela mãe, com quem provavelmente não trocará mais nenhuma palavra até ao fim da vida. E também sabe que se ficar onde está, um dia destes não há ninguém à sua espera do lado de fora.

O cão veio cheirá-la, estranhando vê-la imóvel por tanto tempo. Levantou-se, são horas de fazer o jantar. Ouviu o vento lá fora a soprar.

Com a força do vento, o portão da rua não parava de bater.

6 comentários:

just me disse...

Parabéns!!!! Gostei, muito!

Eu disse...

Profundo e muito bonito.
Existem muitas pessoas a viver nesta situação...
parabéns pelas palavras

Bart Simpson disse...

É teu?
Valeu bem a vista...

Anónimo disse...

Ena, ena, temos um talento escondido (e com muito mais do que o rabo de fora...).

ddm disse...

Finalmente o talento publicado!

Apesar de agradecer alguma da exclusividade que gozei até agora, acho que está na altura de mostrares como sabes escrever!

Muito bem! Muito bom... como de costume, aliás!

P disse...

Muito, muito bem. Gostei muito. Força.
:-)