Quando casou ia virgem.
Hoje em dia mantém apenas uma união sem factos, e um dia-a-dia feito a pensar nos outros. Vive num lugar que entende a infelicidade e a abnegação como coisa natural e própria da condição feminina. Aos olhos dos que a rodeiam tem um bom marido. Tem trabalhado toda a vida pela família e vem sempre dormir a casa.
Não interessa que regresse sempre bêbado. Não interessa que não a acompanhe em nada. Que a envergonhe. Não interessa.
E a bem da verdade, também já nada disso lhe interessa, essa ferida há muito tempo que secou. Muito gostava ela de o ver pelas costas. Mas ele ali está, estendido no sofá da sala da casa que o pai e a mãe lhe deram. Na casa que é dela, mas que ele não deixa, se calhar porque não tem para onde ir.
As filhas estão criadas, bem casadas, deseja-lhes melhor sorte que a sua. Em momentos de desespero chegou a dizer que, no dia em que visse as duas fora de casa, sairia ela de seguida. Mas a casa é dela. A mãe ainda lá mora. E ela ainda não teve coragem de bater com a porta.
Está apaixonada. Um amor duplamente pecaminoso, que os compadres são o mesmo que família. Com mais de quarenta anos de idade, descobriu-se em prazeres que o marido nunca lhe soube proporcionar, na pressa de alcançar o seu próprio. Descobriu o afecto. O encanto. O cuidado. Este homem está disposto a tudo por ela, tudo. Excepto esperar para sempre.
A vida não pára. Não decidir é uma decisão também, e não há decisões sem consequências. Ela sabe. Sabe que se sair por aquela porta terá todo o seu mundo a apontar-lhe o dedo, começando pela mãe, com quem provavelmente não trocará mais nenhuma palavra até ao fim da vida. E também sabe que se ficar onde está, um dia destes não há ninguém à sua espera do lado de fora.
O cão veio cheirá-la, estranhando vê-la imóvel por tanto tempo. Levantou-se, são horas de fazer o jantar. Ouviu o vento lá fora a soprar.
Com a força do vento, o portão da rua não parava de bater.
6 comentários:
Parabéns!!!! Gostei, muito!
Profundo e muito bonito.
Existem muitas pessoas a viver nesta situação...
parabéns pelas palavras
É teu?
Valeu bem a vista...
Ena, ena, temos um talento escondido (e com muito mais do que o rabo de fora...).
Finalmente o talento publicado!
Apesar de agradecer alguma da exclusividade que gozei até agora, acho que está na altura de mostrares como sabes escrever!
Muito bem! Muito bom... como de costume, aliás!
Muito, muito bem. Gostei muito. Força.
:-)
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