quinta-feira, abril 05, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #1




Homem, depoimento
Entrámos por aquela estrada porque pensámos em cortar caminho e ganhar tempo. Não esperávamos que mais à frente ela quase desaparecesse, ficando pouco mais do que um carreiro no meio da vegetação. Muito rapidamente ficámos perdidos, e uma floresta que nunca antes tínhamos notado, praticamente decidiu engolir-nos. Como um azar nunca vem só, a gasolina faltou e nesse dia não conseguimos chegar a tempo de fazer o concerto. Enquanto um de nós, já não me lembro qual, foi à procura de um posto de combustível, ficaram os outros a tomar conta dos instrumentos. Nessa altura ainda era pouca coisa mas era tudo nosso. Agora que penso nisso não era bem assim, a bateria ainda não estava toda paga. Na verdade, tínhamos mais inspiração do que dinheiro. Mesmo assim já tínhamos gravado um disco, tocávamos todos os fins-de-semana, e embora muitos olhares objectivos nos dissessem o quanto este projecto era inviável, tínhamos empenhado o nosso dinheiro, o nosso tempo, toda a nossa alma para viver apenas da música que criássemos. Sentíamo-nos autênticas estrelas. Não interessa se éramos os únicos a achar isso, andávamos felizes assim.

Mas nada disto nos poupou a ficar horas e horas à espera da gasolina. Para passar o tempo resolvi tocar guitarra. E foi logo de seguida que a Eva apareceu. Ela própria afirmou que tinha vindo atraída pela música, quanto a nós, acho que ficámos desde logo atraídos por ela. Eu especialmente. Sentou-se ao pé de mim e começou a cantar. Todos sabem hoje em dia a voz maravilhosa que ela tem, ou pelo menos deveriam fazer um esforço por se recordarem. Mas aqueles primeiros instantes foram especiais, porque ela cantou só para nós. Parecia que até o ar se tinha aquietado para que ela se pudesse ouvir melhor, foi um momento… mágico. Quando o nosso companheiro voltou com a gasolina e pudemos seguir viagem, ela acompanhou-nos com a mesma naturalidade com que tinha surgido dos arbustos. É um pouco bizarro contado assim, mas de facto nunca ocorreu, a nenhum de nós, perguntar-lhe de onde vinha, o que fazia, o que pretendia. Embruxados? Enfeitiçados? A isso não sei responder. A quem interessar saber como começou, aqui está a realidade, tal qual aconteceu.


Eva Nascente, depoimento
A explicação é muito simples, quis saber como era do outro lado. A vontade de conhecer outros mundos não pertence só aos homens. Este mundo que é o meu já não tinha segredos para mim, o mundo dos homens tinha tudo por desvendar. Acusam-me de os ter atraído para mim mas isso não é verdade. Foi ele, com a música que tocava, que me retirou desde logo todas as forças para resistir. A primeira a ser enfeitiçada fui eu. Sempre me ensinaram que a minha espécie e a dos homens não pode co-existir, que vivemos em dois mundos opostos, mas ao som da música parece-me claro que existe pelo menos esse ponto em comum. Foi por isso que comecei a cantar. Depois… Eles eram uma espécie de ponte que me podia levar sem suspeitas para um mundo cheio de coisas para explorar. Tinha sede de aprender, ainda tenho. E no fundo foi só permitir que algum encantamento lhes entorpecesse o espírito, os deixasse predispostos a levar-me com eles. Mas também eu já os acompanhava meio entorpecida, também eu parti sob encantamento.

O mundo dos homens tornou-se ainda mais fascinante por causa daquele homem em particular, é um facto que não pretendo negar. Por causa disso mesmo, e apesar das adversidades, fui duplamente abençoada. Naquele dia abriram-se-me as portas de dois mundos: uma para o mundo dos homens que tanto queria conhecer; outra para uma forma de emoção que até então jamais sentira. Nunca foi minha intenção provocar qualquer mal. E em minha defesa o afirmo, foi sobre mim que se abateu o maior dos sofrimentos.

Próxima publicação: 12 de Abril

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