quinta-feira, abril 19, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #3



Homem, depoimento
A banda ganhava cada vez mais sucesso. Embora as músicas fossem as mesmas de sempre, a voz da Eva dava-lhes uma nova alma. Bem sei que qualquer um que suba a um palco passa por uma transformação. Deixamos de ser nós próprios, vestimos um personagem, brilhamos como deuses vindos de outro mundo. Um brilho que na verdade não é mais do que o olhar dos comuns mortais que nos cercam, e assim nos consideram seres de outro mundo. À nossa dimensão também já tínhamos essa experiência. Mas mesmo assim, desde logo percebemos que com a Eva passava-se algo de diferente. O que era estranho e fascinante ao mesmo tempo, é que também nós, em cima do palco, acabávamos reduzidos ao mesmo olhar de admiração do nosso público. Parece um lugar comum dizer que os olhos dela brilhavam, que o cabelo dela esvoaçava, que às vezes parecia levitar. São comentários possíveis de fazer sobre qualquer cantor em qualquer concerto. Mas ela era… simplesmente deslumbrante. Rapidamente se tornou num fenómeno de popularidade. Os concertos tinham cada vez mais gente, uma legião de fãs fascinados, dirão uns, apaixonados, dirão outros, hipnotizados, embruxados…

Mas as coisas verdadeiramente estranhas, só começaram a acontecer depois de eu e ela compormos em conjunto. Por essa altura a banda já estava com muito sucesso. Regravámos o primeiro disco com a voz dela e duplicámos as vendas em relação à primeira edição. Logo de seguida gravámos outro álbum com novos temas, e no mesmo ritmo frenético saímos em digressão para o promover. Logo nos primeiros concertos, ao som destas novas músicas, vimos coisas que nunca imaginaríamos. Acontecia de tudo. Algumas pessoas ficavam imensamente felizes, vinham agradecer-nos no final dos concertos como se fôssemos todos velhos amigos, de tempos imemoriais. Espectadores abraçavam-se entre si, e sei que em muitos casos se lançaram as sementes para grandes e sólidas amizades, até mesmo amores para a vida toda. Outros ainda lançavam-se em práticas sexuais desenfreadas, aliás, os primeiros problemas com a polícia foram justamente por causa das orgias que aconteciam nos recintos dos espectáculos. Mas aconteceram outras coisas que poucos conhecem. Uma delas é que ainda hoje continuo a receber correspondência de pessoas que juram, pela própria vida, ter visto Deus a assistir aos concertos. E a ser verdade o que afirmam, também Jesus Cristo, o Buda, a Virgem Maria, o profeta Maomé, e mesmo Jim Morrison terão vindo de propósito para nos ver e ouvir...

Havia depois a outra face desta moeda, havia os outros. Que incendiavam os cabelos do vizinho da frente. Que se lançavam à pancada sem qualquer motivo. Que choravam e desesperavam, que tentavam o suicídio. O assassínio. Meia hora de concerto era o suficiente para ver surgir entre a assistência, de forma descontrolada, o espectáculo de todas as emoções humanas, das melhores às piores. Era o caos. Os relatos das primeiras mortes foram para mim o fim do estado de graça. Foi nessa altura que comecei a ver para além da paixão, que tinha tomado conta de mim a ponto de pensar que não precisava de mais nada na vida. O que se passava de tão diferente nos nossos concertos? Era apenas música, porque é que sucediam tantas coisas estranhas? A estas perguntas seguiu-se outra, sorrateira, uma pergunta que já se impunha desde o primeiro dia: quem era Eva, de onde tinha vindo?

Próxima publicação: 26 de Abril

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