Homem, depoimento
Depois de tudo o que aconteceu tive que me habituar a conviver com a dor de a ter deixado partir. Não é suposto desvanecerem-se as memórias com o passar do tempo? Pois comigo dá-se o contrário. Recordo cada vez melhor, de forma mais nítida, cada conversa, cada riso, cada beijo. Consigo reconstituir de cor dias inteiros que passámos juntos, como se assistisse a um filme. Depois as saudades são tão intensas que o meu único desejo é que ela se vá embora de vez, que abandone também as minhas memórias. Sinto-me enlouquecer. Dizem-me para esquecer, que ela não é real, nem nunca o foi. Ou então dizem-me que ela morreu, o que é claramente um contra senso, se nunca existiu não pode ter morrido.
A explicação oficial considerou-me a primeira vítima do “efeito corrosivo de uma psicopata com capacidade para hipnotizar multidões, uma criminosa que sucumbiu pelas próprias mãos encerrando da forma mais terrível todo um ciclo de violência e morte”. E depois todos se empenharam no esquecimento, porque aquilo que não é lembrado não existe. Nenhum corpo foi alguma vez encontrado, mas sobre isso, nem uma palavra. Nem uma referência aos milhares de pessoas que encontraram naqueles concertos a felicidade, o prazer, a alegria, o amor, a amizade. Também não me parece justo, ela fez bem a muita gente… Mas também isso foi esquecido. E no entanto, como é que alguém, ou algo, que não existe, deixa uma dor tão real como aquela que sinto? Uma dor que parece ser imortal. Ninguém compreende que para mim isto não pode ficar assim. Eva Nascente existiu, existe ainda, tem que existir, porque se não for assim, então estive sempre sozinho.
Quanto mais olho à minha volta menos me identifico com este mundo que sempre foi o meu. A minha essência já não parece ser a mesma. Não é do mundo da lógica, das certezas, da realidade empírica e das experiências científicas esta sensação de que ela não chegou a ir-se embora, de que a sua presença ainda se faz sentir. A mecânica quântica não explica mas não é menos verdadeira por isso, esta ligação entre dois mundos, que teimosamente persiste e resiste a todas as adversidades, até ao próprio tempo. Já não falo destas coisas a ninguém, sempre que o faço vejo crescer nos olhos dos outros a convicção de que estou louco. Louco ou não, vou-me redimindo dos meus erros escrevendo as letras para as canções que poderíamos compor juntos se a história tivesse sido outra. Nestas novas canções já não falo de traição ou de mágoa. Apenas digo, Eva, sei que existes, só existindo podes cantar como cantas. É verdade, quase me esquecia de mencionar este pormenor, meio delirante. É que a oiço cantar com cada vez mais frequência e não duvido, nem por um instante, que é ela a cantar só para mim. Sinto que mudei, já não sou o mesmo. Pressinto que alguma coisa boa está ainda por suceder. E desta vez não vou ter medo de me deixar encantar.
Fim de publicação