quinta-feira, maio 03, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #5



Homem, depoimento
Os nossos concertos tornaram-se cada vez mais policiados, numa tentativa às vezes vã de controlar o incontrolável. Chegava a ser cómico, dir-se-ia que havia tantos polícias quanto espectadores. O bizarro é que, muitas vezes, os próprios agentes se deixavam contagiar por aqueles fenómenos de histeria colectiva, e com a agravante de estarem armados. Foi muito bem abafado aquele episódio do polícia que atingiu a tiro vários casais de espectadores, apenas porque estavam a beijar-se. Outra coisa que me incomodava um pouco é que o resto da banda parecia divertir-se, não se deixando impressionar com as tragédias que por vezes aconteciam entre a assistência. O nosso baterista deixou de consumir droga antes dos concertos. Também deixou de se embebedar a seguir. Dizia que já não precisava, a música que tocávamos era suficiente. A Eva estava cada dia mais resplandecente, uma verdadeira deusa, especialmente quando sorria para mim. Era quase sempre impossível não me perder nesse sorriso, deixar-me levar pela onda de bem-estar que ela me provocava.

Mas tornou-se impossível permanecer de olhos e ouvidos fechados, quando chegavam cada vez mais informações sobre gente que morria no meio daquele caos. Surgiram os primeiros concertos cancelados, e as sombras começaram a tomar conta do nosso paraíso. Mesmo assim precisei de tempo para lhe fazer directamente a pergunta que me consumiu durante algum tempo, quem és tu afinal. Está enganado quem pensa que precisei de ganhar coragem para perguntar. Tal como alguém já disse em tempos, do que eu precisei foi de coragem para ouvir a resposta.

Eva Nascente, depoimento
Perguntou-me quem eu sou, pergunta mais simples parece não haver, se bem que mesmo os homens nunca têm apenas uma resposta para ela. Respondi-lhe com a verdade. Sou uma das muitas realidades deste mundo, sou a vontade de ser mais do que aquilo que estou destinada a ser, sou o desejo de aprender, sou a mulher que nasceu do teu amor, aquela que acordaste por dentro, aquela que te acordou por dentro, sou a tua inspiração. Sou corpo e espírito, tal como tu. Mas o meu corpo e espírito é feito do que julgas não existir, e te habituaste a ver apenas em sonhos, e a chamar-me fada, ou bruxa, feiticeira, duende, extra-terrestre. A minha verdade é esta, foi esta que lhe entreguei. E também eu perguntei: homem, qual vai ser a tua verdade? No que é que te vais tornar, agora que sabes quem sou?

Senti o abismo que se abria entre nós à medida que as minhas respostas apenas geravam mais interrogações. Percebi então o quanto estava longe da existência humana, que julgava ter alcançado tão facilmente. Afinal, os nossos sentimentos eram a base que sustentava uma realidade tão frágil que a qualquer momento poderia desfazer-se. Tive medo, senti o chão a fugir-me dos pés. Se também ele, como a maior parte dos homens, concluísse que eu não existo, como poderia eu, de facto, existir.

Próxima publicação: 8 de Maio

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