segunda-feira, outubro 01, 2012

Elisa, filha de ninguém #4/7

Não vale a pena pensar no que poderia ser, se não o foi. Os factos impõem-se, a realidade oprime e angustia, o crime está diante de todos. As mulheres afastaram-se todas da criança, que estranho fenómeno este, é caso para perguntar de que se afastam elas, se do horror de estar ali uma recém-nascida morta, se da culpa que cada uma cala dentro de si, uma porque deixou morrer, outra porque sabia mas nada disse, outra porque nunca chegou a saber. E como puderam afinal não saber, nada dizer, deixar morrer, são perguntas que ficam até hoje sem resposta. O silêncio instalou-se nos espíritos de todos, um imenso espaço vazio onde imperou o choque, primeiro, partilhado logo a seguir com outros sentimentos, aí vem o remorso, já não era sem tempo, faça favor de entrar, isto disse o choque ao remorso, bem-vindo a este silêncio enorme, que de tão grande e profundo ainda tem espaço de sobra, então se não se importa, isto disse o remorso, entra já também o desalento, com certeza, instalemo-nos então todos, enquanto não chega o medo, esse quando chegar, já se sabe, toma conta de tudo e temos nós que ir à procura de outros silêncios para preencher.

Quando chegou o medo as mulheres estavam entregues à tarefa de se ajudarem a lavar as próprias feridas, as do corpo e as outras. Afinal, se calhar por ser este silêncio tão grande, sempre sobrou algum espaço para a solidariedade, e se a primeira pedra for lançada que venha de fora, destas paredes para dentro já todos pecaram algum dia. Além disso, é justo dizê-lo, estão ali duas filhas a precisar do amor de uma mãe que já nasceu há muito tempo e que irá sê-lo, por opção, até morrer.

Já para o homem da casa tudo se passou de outra forma. Manuel permaneceu estático mais algum tempo, apenas olhando o corpo. Dir-se-ia que no silêncio que o cercava o choque prolongou a sua presença, demorando mais a sair. Mas foi o medo que acabou por invadi-lo por inteiro, choque, remorso e desalento lá sabiam do que estavam a falar. Ou então foi por culpa da solidariedade e da falta dela, que se deixou ficar a ocupar o silêncio das mulheres, com um homem ali mesmo ao pé entregue apenas a si mesmo, e ao medo, já sabemos.

Chegou-se à porta da rua para se assegurar que nada fora ouvido pelos vizinhos, e que a madrugada mantinha todos em volta mergulhados nas profundezas do sono. Enquanto voltava para junto do corpo ia pensando que se estivesse a filha de ninguém ainda viva, a sua reacção poderia ser a de um pai desonrado. Pedir contas à família do rapaz, casar a filha às pressas, gritar, desesperar. Ainda que apenas imaginados, pareceram-lhe estes momentos de humilhação e desonra como a maior das felicidades. Qualquer coisa seria melhor que esta outra realidade, esta forma silenciosa cuja presença possuía agora o poder de dominar tudo e todos, morta sim, mas por isso mesmo tornando irrelevante todo o tempo que passou até este momento, deitando para o lixo o homem que antes existiu, morto também ele afinal, e se assim é, compete-nos perguntar, que homem é este que agora aqui temos.

Os seus pensamentos sucederam-se a um ritmo frenético. Se num instante pensava numa coisa, logo a seguir surgiam outras ideias, outras recordações, sentimentos, atropelavam-se todos, muitas vozes soando ao mesmo tempo dentro de uma única cabeça. Será normal em face das circunstâncias, com certeza que sim, afinal qualquer um de nós poderá dizer que a si próprio também já lhe sucedeu, uns dirão que por conta de coisas más, outros felizmente, por coisas boas. Mas é também pertinente comentar, e não sem alguma preocupação de espectadores, que esta força de pensarmos e sentirmos muitas coisas ao mesmo tempo nem sempre nos faz bem, aliás, às vezes a violência do pensar e do sentir é tal, que até parece impossível como não cai o nosso corpo fulminado logo ali. Sabemos bem que alguns corpos não resistem e sucumbem, aos pensamentos, aos sentimentos.

Adiante. Como íamos dizendo, a cabeça deste homem é um turbilhão, só assim se explica que ao mesmo tempo que vê na filha uma mulher pérfida capaz de deixar morrer uma criatura inocente, já de repente a olha e não é isso que vê. Agora que voltou a olhá-la vê apenas a sua filha, o gesto criminoso tornou-se numa névoa desfocada, minha querida filha, uma rapariguita sem siso nenhum, o desalento e um vazio sem explicação estampados nos olhos, enquanto a mãe procura, através da água, limpar-lhe do espírito a memória do que aconteceu. Esta Maria não soube, não pôde, não quis ser mãe para a sua cria. Mas para este homem e esta mulher essa questão não se coloca, as crias deles estão ali mesmo à sua frente e reclamam por cuidados. Os homens de fora daquelas paredes poderão condenar a criminosa, o homem que está paredes adentro não o pode fazer. Há já muitos anos que é pai, não pode agora dizer, desisto, meteste-te nela agora aguenta-te sozinha. A sua obrigação manda proteger, se o preço a pagar é ser cúmplice de pecado mortal, que assim seja. Com este último pensamento tomou consciência do papel que lhe cabia agora cumprir. Era o homem da casa. Alguém tinha que abrir a cova, sepultar. Alguém tinha que evitar que o crime chegasse a ser conhecido. No mesmo local onde caiu, um corpo já frio aguardava, paciente, que alguém o tomasse nos braços, mais cedo ou mais tarde alguém teria que o fazer. Para preservar o segredo, proteger a família da condenação da justiça, a Elisa, filha de ninguém, teve que ser enterrada.

Próxima publicação: 8 de Outubro

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