segunda-feira, outubro 22, 2012

Elisa, filha de ninguém #7/7

Com o tempo as filhas casaram e tiveram os seus filhos, o Manuel abraçou e beijou muitos netos. Mas o seu envelhecimento foi precoce, e um certo modo de olhar por cima do ombro tornou-se numa coisa comum. Os seus olhos nunca mais perderam um brilho peculiar, o do terror de quem espera o seu castigo a qualquer momento, que certamente será terrível, inclemente, que se não vier dos homens virá de Deus, ou quem sabe de si próprio. A nós só nos resta reflectir sobre qual dos três juízes é o pior, e qual deles dará a sentença que mais faz sofrer os condenados.

Nesta cabeça que foi atravessada por tantos pensamentos numa só noite, apenas um prevaleceu e tomou conta de todo o seu espírito. Cristalizou-se dentro de si uma certeza, a de que o castigo chegaria, a qualquer momento, na figura de um polícia que o levaria preso. Tudo começou com o enterro da filha de ninguém mas continuou pelos anos fora, pobre Manuel, nesta história pelo menos o pior dos três juízes foi ele próprio, que se condenou para o resto da vida, sem apelo nem perdão. A justiça dos homens talvez tivesse sido mais branda, quanto à de Deus fica-se sempre nesta dúvida, basta lembrar que se nem para a Elisa filha de ninguém há garantias dela ter sido recebida no Paraíso, que dizer do homem que a enterrou por duas vezes.
 
*

Mais de vinte anos depois, um velho muito velho está sentado à soleira da porta para apanhar o sol do fim da tarde. Vencido pela demência, olha aterrorizado para um homem que abre o portão do quintal, seguido de uma mulher e duas crianças que vêm direitas a ele. Reconhece a filha mais nova e pergunta, tal como faz constantemente, que homem é aquele e se é o polícia que o vem buscar. Elisa passa-lhe a mão pela cabeça e pergunta, Meu pai, então não vês que é o meu marido, e vinha a polícia buscar-te porquê. Manuel olha-a bem de frente para responder, Tu bem sabes, tu bem sabes porquê. Elisa beija o pai e entra em casa, deixa o velho entregue a si próprio. Estes episódios tornaram-se banais e já ninguém lhes dá importância. Para quê recordar um tempo infeliz que não fez história? Todos fizeram por esquecer aquela simples forma de vida, que de tão pouco o tempo que existiu, foi como se já tivesse nascido morta. Acreditemos nisto e será assim na memória de todos, uma menina que nasceu morta.

Todos conseguiram fazê-lo menos este homem que aqui está. Sem testemunhas nem denunciantes, prisioneiro de si próprio, condenado à morte pela própria consciência, Manuel sabe bem que não foi assim que tudo se passou. Na sua mente não há trevas. Quanto a nós, que estamos do lado de fora, a luz do sol também nos deixa ver com clareza, há um bebé morto naquele quintal que está vivo, há um homem vivo naquele quintal que está morto.

Fim de publicação

2 comentários:

CF disse...

Que boa surpresa conhecer a Blimunda. Vou estar atenta Filomena :)

blimunda sete luas disse...

Bem vinda. Enjoy! :-)