Finalmente, tudo acabou. Os primeiros raios de luz vieram a tempo apenas para testemunhar o arrumar da enxada, encostada junto à porta das traseiras, por onde agora vai entrar este velho, que não o era ontem mas que assim se tornou durante a noite. Se ficarmos nós cá fora neste tempo e neste lugar, poderemos ver os homens a passar na direcção das máquinas que já os esperam, passaram mesmo junto ao muro, espreitaram para dentro mas não foi por mal, isto de espreitar por cima dos muros é próprio do ser humano, espreitam mesmo que não haja nada para ver, como é agora o caso, apenas uma enxada encostada a uma parede.
Manuel fechou a porta atrás de si. Três mulheres o aguardavam, mas ninguém falou do que se passara, há muitas maneiras para fazer com que o passado deixe de existir, e esta é uma delas. O dono da casa pediu água para se lavar, a quem primeiro pertencia servi-lo assim fez, as outras duas voltaram a deitar-se, cada uma com os seus pensamentos. Fechado na cozinha, imerso na tina cheia de água bem quente, Manuel procurou então impor o silêncio aos seus pensamentos. Em vão. Três pancadas bem dadas na porta despertaram novamente todos os alarmes, levantou-se de um pulo, a água transbordou pelo chão, é a polícia, vêm-me buscar. Quis mexer-se dali mas as pernas não lhe obedeceram, sentiu a urina quente deslizar e misturar-se com a água. Alguém me viu e denunciou-me, vou preso, não mereço outra coisa. É a polícia, já me vêm buscar, perguntou quando sua mulher entrou na cozinha. O rosto da mulher fechou-se, Não digas disparates, é o Joaquim a saber porque te demoras tanto a sair para o campo, quis saber se estás doente e eu disse-lhe que sim, que hoje não podes ir.
No dia seguinte já pôde ir, assim como nos outros todos. As mulheres seguiram também em frente com as suas vidas, a Maria fez das tripas coração e lá foi trabalhar ao fim de três dias, mais tempo de ausência e já seria de estranhar. Portas adentro, nunca mais aquela casa foi a mesma. Não se falou mais no assunto, cada um remoeu consigo mesmo tudo o que se passou. Ninguém perguntou à mãe, como foste capaz, à irmã, como não acordaste antes, à avó, como não deste por isso, ao avô, o que fizeste aos pensamentos.
Próxima (e última) publicação: 22 de Outubro
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