segunda-feira, outubro 15, 2012

Elisa, filha de ninguém # 6/7

Nascida para logo morrer, enterrada para se desenterrar a seguir, o corpo de Elisa demorou a alcançar o tão aclamado eterno descanso. Voltou aos braços do avô que seguiu a passos rápidos, furtivo, de regresso a casa. Olhando para todos os lados, a cada momento esperava encontrar alguém que finalmente apontasse o dedo e trouxesse a luz a toda esta escuridão. Mas a noite continuou tranquila e o povo permaneceu adormecido. As forças já iam faltando a este homem. Foi enfim no fundo do quintal, a meia dúzia de metros da porta de sua casa que se abriu o segundo e definitivo buraco. Ali não havia o perigo de alguém se pôr a escavar. O medo de ser descoberto tomou novamente conta de si e por várias vezes se sobressaltou, imaginando alguém a espreitar por cima do muro, bons dias Manuel, que fazes tu, a abrires buracos na terra a estas horas da madrugada. A sua cabeça continuou a funcionar por conta própria, pensando nas coisas mais absurdas, como se exibisse filmes de outras realidades para seu próprio entretenimento. Lembrou-se de quando era criança e jogava ao berlinde com outras crianças como ele. Lembrou-se da primeira mulher que o teve nos braços, não sabia nada, ela é que me ensinou tudo, por onde andará. O buraco está aberto, desta vez ficou mais fundo. Ocorreu-lhe de repente que um pouco mais para o lado ali enterrou também um cão do qual gostava muito, só que dessa vez fora diferente, o cão morrera de velho. Pensou em pronunciar uma prece para pedir perdão a Deus, se para a absolvição basta o arrependimento este homem já ia arrependido quando cometeu o seu crime, agora é só pedir. Mas o cansaço venceu-o e esqueceu-se logo a seguir de pronunciar a prece que lhe poderia dar a salvação.

Finalmente, tudo acabou. Os primeiros raios de luz vieram a tempo apenas para testemunhar o arrumar da enxada, encostada junto à porta das traseiras, por onde agora vai entrar este velho, que não o era ontem mas que assim se tornou durante a noite. Se ficarmos nós cá fora neste tempo e neste lugar, poderemos ver os homens a passar na direcção das máquinas que já os esperam, passaram mesmo junto ao muro, espreitaram para dentro mas não foi por mal, isto de espreitar por cima dos muros é próprio do ser humano, espreitam mesmo que não haja nada para ver, como é agora o caso, apenas uma enxada encostada a uma parede.

Manuel fechou a porta atrás de si. Três mulheres o aguardavam, mas ninguém falou do que se passara, há muitas maneiras para fazer com que o passado deixe de existir, e esta é uma delas. O dono da casa pediu água para se lavar, a quem primeiro pertencia servi-lo assim fez, as outras duas voltaram a deitar-se, cada uma com os seus pensamentos. Fechado na cozinha, imerso na tina cheia de água bem quente, Manuel procurou então impor o silêncio aos seus pensamentos. Em vão. Três pancadas bem dadas na porta despertaram novamente todos os alarmes, levantou-se de um pulo, a água transbordou pelo chão, é a polícia, vêm-me buscar. Quis mexer-se dali mas as pernas não lhe obedeceram, sentiu a urina quente deslizar e misturar-se com a água. Alguém me viu e denunciou-me, vou preso, não mereço outra coisa. É a polícia, já me vêm buscar, perguntou quando sua mulher entrou na cozinha. O rosto da mulher fechou-se, Não digas disparates, é o Joaquim a saber porque te demoras tanto a sair para o campo, quis saber se estás doente e eu disse-lhe que sim, que hoje não podes ir.

No dia seguinte já pôde ir, assim como nos outros todos. As mulheres seguiram também em frente com as suas vidas, a Maria fez das tripas coração e lá foi trabalhar ao fim de três dias, mais tempo de ausência e já seria de estranhar. Portas adentro, nunca mais aquela casa foi a mesma. Não se falou mais no assunto, cada um remoeu consigo mesmo tudo o que se passou. Ninguém perguntou à mãe, como foste capaz, à irmã, como não acordaste antes, à avó, como não deste por isso, ao avô, o que fizeste aos pensamentos.
 
Próxima (e última) publicação: 22 de Outubro

Sem comentários: