quinta-feira, maio 10, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #7



Homem, depoimento
Realmente vivemos num mundo estranho. Enredamo-nos tanto nos nossos compromissos que eles ganham mais importância que a nossa própria vontade, impondo-se sem direito a contestação sobre as necessidades mais básicas, humildemente suplicadas pelos nossos corações. Só por isso se explica que, mesmo depois de tudo o que descobri e decidi, não tivesse dissolvido a banda de imediato. A verdade é que, mesmo com todos os problemas que surgiam, não podíamos cancelar os concertos. Também por conta destes problemas, a banda estava no auge do sucesso e havia contratos a cumprir.

Continuámos a tocar, mas as actuações eram cada vez mais curtas porque se tornava impossível controlar a multidão. O meu afastamento dela também se reflectiu na música e da pior forma possível. Eu ficava furioso, acreditava piamente que ela fazia de propósito para deprimir as pessoas. Eva cantava com uma melancolia na voz que nos trespassava os ossos. Vi muitas vezes os músicos a chorar enquanto tocavam, mesmo no meio das músicas mais agitadas, e sem conseguirem compreender porquê. As reacções do público também se alteraram, e se por um lado diminuíram os desacatos e tentativas de assassinato, a taxa de suicídios durante e depois dos concertos começou a aumentar de forma assustadora. Em consequência disso surgiram aquelas organizações de pais, que reclamavam pelo nosso silêncio total enquanto músicos. Nem que para isso tivessem que nos matar...

Por essa altura, vários jornalistas, comentadores, apresentadores de televisão, despertaram para a mesma pergunta que eu próprio tinha feito: quem é esta Eva, de onde surgiu? É claro que não posso afirmar isto como verdade rigorosa, mas sempre suspeitei que a minha descoberta da verdade se assemelhou à bola de neve que cai do cimo do penhasco. Vem rebolando por aí abaixo, recrutando outras iguais a ela, e tornando-se cada vez maior. Fui apenas o primeiro a fazer a pergunta, e ao fazê-la quebrei o encanto que abriu outros olhos. Começaram a surgir más referências à nossa banda um pouco por toda a imprensa. As críticas nos jornais e revistas, de apoteóticas passaram a demolidoras. Acredito que alguns desses críticos tenham ficado desencantados, tal como eu. Outros, se calhar, pura e simplesmente eram feitos de uma matéria que não se deixava encantar, e apenas permaneciam calados à espera do momento oportuno para se fazerem ouvir. Da Eva disseram-se coisas terríveis. A sua beleza, que em boa verdade sempre foi impossível de contestar, passou a ser escamoteada em todas as revistas. Aliás, foi numa dessas revistas cor-de-rosa que primeiro surgiu aquele comentário venenoso, em letras pequeninas, ilustrando uma foto: “parece uma bruxinha”. Aquela legenda, não sei como, tornou-se na ideia dominante, e logo foi veiculada a ideia de que aqueles olhos doces eram apenas a máscara que escondia todo o mal. Juro que nunca a denunciei, esse peso não carrego na minha consciência. Mas identificava-me totalmente com tudo o que dissesse mal dela, mesmo que com isso também eu e a banda surgíssemos prejudicados. Tinha um prazer sórdido em mostrar-lhe todas as críticas e às vezes inventava outras, ainda mais ofensivas. Menti dizendo-lhe que já não a amava, agora que sabia a verdade. Que as suas mentiras estavam à vista de todos. Que todo o seu mundo era uma fraude que não existe e nunca existiu. Mascarei assim o que sentia, defendi-me como podia, não dela, que jamais me quis fazer mal, mas da dor mais destruidora de todas, a de nos sentirmos traídos por quem amamos.

Próxima publicação: 15 de Maio

2 comentários:

Anónimo disse...

Devo dizer que estou abismada. Adoro.
O conceito é bastante interessante, as músicas estão bastante bem escolhidas e a escrita é incrivelmente cativante. Eu nunca me saio muito bem a fazer comentários do género, porque sou mais do tipo de dizer que gosto muito e pronto. Mas achei que devia dizer um pouco mais, com toda a falta de jeito que me é característica :P
Portanto aqui está. Parabéns por um trabalho brilhante.

blimunda sete luas disse...

Bolas, pá, estava a ver que ninguém dizia nada! :-)

Muito obrigada Iz, pelas simpáticas palavras, espero que continue a acompanhar as publicações, ainda faltam 4 posts até chegar ao fim.

Volte sempre! :-)