segunda-feira, julho 09, 2012

Estrudes Luísa

As vinhas dão trabalho o ano inteiro. É preciso podar, depois empar, curar, vindimar. Lavar os cestos. Pisar as uvas. Fazer o vinho. Lançam-se as sementes à terra e brotam as batatas, o trigo, as favas. Quem olhar com atenção vê que o trabalho também brota da terra, não é coisa que se coma ou beba, mas pensando bem, sem trabalho não há o que comer, e isto é verdade em todos os tempos do mundo. Quem não tem terras precisa de trabalhar, quem as tem precisa de quem as trabalhe. Mas em Agosto não há trabalho, só há calor.

Já é fim de tarde mas o calor continua opressivo, doentio, o ar irrespirável. A estrada é comprida e é só uma, atravessa a aldeia de ponta a ponta, a casa é das primeiras e já se vê ao longe, mas lá em cima. Demasiado lá em cima para o calor que está. A Estrudes regressa a casa pela rua deserta, portas e janelas fechadas. Todos os que a isso se podem permitir esperam que o estio dê uma trégua para então saírem.

Quanto a ela, não tem esse privilégio. A sua condição de viúva vestiu-a de negro desde os trinta, já lá vão três anos. É a conta que Deus fez. Talvez por isso seja também em número de três os filhos que lhe ficaram, mais a mãe, todos por esta hora à espera dela. O mais velho só tem seis anos. Há também a menina e o filho mais novo, tão pequeno ainda, tão pequenos todos.

O marido morreu a trabalhar, atropelado pelo carro de bois que comandava. Donde se conclui que o trabalho não dá só do que comer, também dá do que morrer. Neste início de século vinte, num sítio em Portugal que mais tarde alguns letrados poderão chamar de profundo, a Estrudes recebeu de indemnização, pela morte do marido, o facto de poder contar apenas consigo própria para sobreviver e cumprir a sua obrigação de criar três filhos e sustentar a mãe.

É claro que ninguém se chama Estrudes, o nome certo é Gertrudes. É o modo de falar das gentes que lhe abrevia a pronúncia. E por misteriosa decisão da progenitora, a Gertrudes tem outro nome, é Gertrudes Luísa. Não deixa de ser coisa estranha dois nomes assim reunidos. Se o primeiro se percebe no meio rural que reconhecemos pela paisagem em volta, de onde teria vindo a Luísa, nome de gente distinta, a destoar em tudo nesta mulher? Luísa pressupõe certa fineza nas mãos, no rosto e nos modos. Não é nome para camponesa. Apetece ir bater ao postigo daquela casinha, tão pequena, como pode viver lá tanta gente, diga lá minha senhora, como é que se lembrou de juntar a Luísa à Estrudes? Provavelmente a resposta seria igual à de tantas mães pelo mundo fora, porque sim, porque gostei, porque olhei para ela e foi o nome que Deus me segredou. Se quisermos especular, fantasiar, podemos inventar uma resposta mais poética: Estrudes Luísa porque se o destino de Estrudes já ela o tinha por garantido, ao menos que no nome houvesse a esperança de um dia ela poder ter outro, um destino de Luísa, quem sabe. E simplificando, reconheçamos apenas que soa bem.

Satisfeita a curiosidade onomástica, voltemos para o calor da rua. Mais forte que ele parece ser a Estrudes, que caminha a passo seguro, direita a casa. Já não é tempo de moças que vão formosas e não seguras. Com uma vida tão dura, trinta e poucos anos já chegaram para que se perdesse a mocidade e a formosura da Estrudes Luísa. Os passos são porém seguros. Quando se fica viúva e com três filhos para criar perde-se o direito à fragilidade. Qualquer Luísa teria que deixar de o ser, esta não foi excepção. Ficou somente a Estrudes para trabalhar no campo, na casa, no que houver, porque o trabalho é que não pode faltar. A Estrudes não chora a morte do marido porque isso não dá de comer a ninguém, não se lamenta por estar condenada à solidão ainda tão jovem, estas questões não são deste tempo. A Estrudes não fraqueja nem permite que o desespero tome conta dela. Não se engana nas contas embora não saiba ler nem escrever, paga sempre tudo o que deve. A Estrudes já anda meia curvada, pela dureza do trabalho e pela dor de tudo o que lhe aconteceu. O seu semblante endureceu, a falta de afecto vai acabar por secá-la por dentro, mas isso não é culpa de ninguém, nem sequer dela própria, e o seu passo é seguro, porque não pode ser outro.

Algumas vezes à noite, quando todos dormem espalhados pelas três divisões da casa, a Luísa que há na Estrudes sente saudades e dá-se ao luxo de chorar, perguntando-se por que razão tem o seu caminho que ser tão difícil. Nesses momentos suspira por uma vida mais fácil e deseja, com todas as suas forças, que ao menos uma única vez, em alguma pequena coisa, a vida se limitasse a exalar o perfume da rosa e deixasse os espinhos para outros que não ela.

Neste Agosto em que não há trabalho o desespero está cada vez mais difícil de controlar. Dia após dia temo-la visto sair de manhã, ainda com a ilusão do ar fresco que depressa se desvanece, indo a cada dia um pouco mais longe, à procura do sustento que não surgiu em lado nenhum. Já perdeu a conta aos dias em que regressou a casa, tal como a estamos a ver agora, todas as expectativas frustradas. E o desespero, na maior parte do tempo tão bem domado no fundo de si própria, a cada regresso tem vindo a ganhar novas forças, tornando-se lentamente numa besta abominável, apenas à espera que a última amarra se solte para irromper e tomar conta de tudo.

Uma proposta de casamento surgiu recentemente e aguarda resposta. Também viúvo, também com dois filhos pequenos, quem é mãe de três pode ser mãe de cinco, este homem é dos que têm terras para dar trabalho aos outros. Curiosamente, agora que as suas preces foram finalmente atendidas e o caminho mais fácil se perfila à sua frente, a resposta da Estrudes tem tardado a ser dada. Não estás cansada de enfrentar o mundo inteiro sozinha, três anos já não te chegam? Por quanto tempo vais tu conseguir criá-los assim, não seria melhor se? Estas palavras são da sua mãe, são de si própria nas noites que já conhecemos, e a resposta parece óbvia. Mas estranhamente, o desespero parece encontrar na figura deste homem novos meios para se agigantar ainda mais dentro dela. Nos últimos tempos, e a cada regresso a casa sem trabalho, a possibilidade do casamento foi ganhando diferentes contornos. A cada dia que passa, parece ser a única forma possível de continuar a dar alimento aos filhos. Mais do que o caminho para uma nova vida, esta proposta é uma questão de sobrevivência.

Este caminho será certamente o mais fácil, mas onde está, que é feito do perfume da rosa, por que motivo não se faz ele sentir? Em tudo isto pensa a Estrudes de noite. No dia seguinte, cada vez mais cedo porque é preciso ir cada vez mais longe, nova tentativa para encontrar trabalho, que o desespero ainda não reina, embora falte pouco.

Foi com todo este peso que saiu de casa hoje de manhã. Nunca a Estrudes fez tanto jus ao seu nome. Curvada perante o inevitável, há vários dias que já entendeu como é inútil esta busca pelo trabalho que não há. Mesmo assim voltou a sair, levou o seu desespero a passear, quanto à esperança, já há mais de uma semana que desistiu de a acompanhar. Cada vez mais próxima de uma decisão que dará alimento aos seus filhos, como que por castigo a lembrança do marido morto tem-se tornado cada vez mais forte e acompanha-a sempre no seu caminho. Calcorreou os lugares, bateu a todas as portas. Já nem se sentia reagir quando a resposta vinha, sempre a mesma, sempre igual. E tal era o seu estado de resignação que nem se deu conta, ao princípio, quando por uma única vez a resposta não foi a mesma de sempre. Hoje, no dia em que a vemos, a Estrudes arranjou trabalho.

Quem a vir agora a subir a estrada, direita a casa, vê uma mulher precocemente velha dobrada pelo peso da trouxa de roupa que trouxe para lavar. Mas quem como nós teve o privilégio de a poder acompanhar, sabe bem que a Estrudes trouxe um fardo de roupa pesado mas deixou ficar para trás outros tantos fardos que lhe pesavam muito mais.

O trabalho que, de forma indiferente, aquela outra mulher lhe pôs nos braços, devolveu à Estrudes o nome que lhe andava a faltar. Esta Estrudes que aqui vai hoje leva a cabeça erguida e mais firmeza no andar, está inteira, é a Estrudes Luísa. Não é Luísa por ser fina ou rica, isso nunca poderá vir a ser. É Luísa porque é dona de si própria, leva consigo a dignidade de quem se sustenta a trabalhar. Esta Estrudes Luísa desprezou o caminho mais fácil. Encarou o mais difícil e teve a coragem de perceber que só este lhe convinha. Que só por aquele caminho poderia continuar a trazer os seus dois nomes consigo. E que lhe assentam na perfeição, façamos a justa vénia a quem a baptizou.

Ali vai ela direita a casa, com o trabalho que foi possível encontrar hoje, melhores dias virão, piores dias virão. Hoje e até que morra, não haverá outra forma de levar a vida. A sua decisão só pode ser uma, e por incrível que pareça no meio de tanto calor, parece levantar-se uma brisa com um ligeiro perfume de rosas.

O pedido de casamento foi recusado naquele mesmo dia, para todo o sempre.

domingo, junho 03, 2012

Considerações de uma mulher de meia-idade que foi ao Rock in Rio

- Afinal ir ao Rock in Rio é mais ou menos como ir à praia: a malta faz umas sandes, compra sumos de pacote e mete o protector solar na mochila.

- Afinal estar no Rock in Rio é mais ou menos como estar no parque de campismo: há fila para comer; fila para fazer xixi; fila para tomar café.

- Afinal estar no Rock in Rio é tomar consciência da moda deste ano adoptada pelas adolescentes no que toca a vestuário. Alguém já se apercebeu? Eu só dei conta naquele dia, parecia que andavam todas fardadas. Calções (muito) curtos, de cintura subida. Vestidos por cima de collants (!), vulgo meias de vidro, indiferentes à temperatura acima dos 30 graus. É claro que usados de forma generalizada (pois se é moda), tanto pelas que saem favorecidas, como por aquelas que ficam um total desastre com aquilo vestido. Sendo que, depois de umas horas espojadas pelo meio do chão, não há collants que resistam e é ver malhas pelas pernas abaixo, deixando-as a todas com um aspecto mais ou menos igual, com um certo ar de prostituta gasta por muitos anos de profissão, o que de certa forma é a democratização do mau aspecto. É a justiça feita às gordas que nunca deviam ter optado pelos calçõezinhos logo de início e justiça feita a mim, que na idade delas também teria andado com uns vestidos, sem que o meu corpinho mo permitisse.

- Afinal o que é que se passa com as tampas das garrafas de água, pá? Deixem estar que para a próxima já não me apanham com esta. A vantagem de não vestir calções curtos é a quantidade de sítios onde imagino ser possível esconder tampas de garrafas de água, seus palermas...

- Afinal o que realmente vale a pena no Rock in Rio são mesmo os concertos. Não fosse pela experiência avassaladora de ver e ouvir os artistas do nosso coração, se calhar nalguns casos em oportunidades únicas, aquilo não seria mais do que uma concentração excessiva de pessoas e de hormonas de reprodução num espaço limitado, ainda por cima cheio de pó e de mershandising.

Mas assim, com a alma cheia de música, mal posso esperar pelo cartaz de daqui a dois anos, para decidir em que dia vou outra vez.

sexta-feira, maio 25, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #11



Homem, depoimento
Depois de tudo o que aconteceu tive que me habituar a conviver com a dor de a ter deixado partir. Não é suposto desvanecerem-se as memórias com o passar do tempo? Pois comigo dá-se o contrário. Recordo cada vez melhor, de forma mais nítida, cada conversa, cada riso, cada beijo. Consigo reconstituir de cor dias inteiros que passámos juntos, como se assistisse a um filme. Depois as saudades são tão intensas que o meu único desejo é que ela se vá embora de vez, que abandone também as minhas memórias. Sinto-me enlouquecer. Dizem-me para esquecer, que ela não é real, nem nunca o foi. Ou então dizem-me que ela morreu, o que é claramente um contra senso, se nunca existiu não pode ter morrido.

A explicação oficial considerou-me a primeira vítima do “efeito corrosivo de uma psicopata com capacidade para hipnotizar multidões, uma criminosa que sucumbiu pelas próprias mãos encerrando da forma mais terrível todo um ciclo de violência e morte”. E depois todos se empenharam no esquecimento, porque aquilo que não é lembrado não existe. Nenhum corpo foi alguma vez encontrado, mas sobre isso, nem uma palavra. Nem uma referência aos milhares de pessoas que encontraram naqueles concertos a felicidade, o prazer, a alegria, o amor, a amizade. Também não me parece justo, ela fez bem a muita gente… Mas também isso foi esquecido. E no entanto, como é que alguém, ou algo, que não existe, deixa uma dor tão real como aquela que sinto? Uma dor que parece ser imortal. Ninguém compreende que para mim isto não pode ficar assim. Eva Nascente existiu, existe ainda, tem que existir, porque se não for assim, então estive sempre sozinho.

Quanto mais olho à minha volta menos me identifico com este mundo que sempre foi o meu. A minha essência já não parece ser a mesma. Não é do mundo da lógica, das certezas, da realidade empírica e das experiências científicas esta sensação de que ela não chegou a ir-se embora, de que a sua presença ainda se faz sentir. A mecânica quântica não explica mas não é menos verdadeira por isso, esta ligação entre dois mundos, que teimosamente persiste e resiste a todas as adversidades, até ao próprio tempo. Já não falo destas coisas a ninguém, sempre que o faço vejo crescer nos olhos dos outros a convicção de que estou louco. Louco ou não, vou-me redimindo dos meus erros escrevendo as letras para as canções que poderíamos compor juntos se a história tivesse sido outra. Nestas novas canções já não falo de traição ou de mágoa. Apenas digo, Eva, sei que existes, só existindo podes cantar como cantas. É verdade, quase me esquecia de mencionar este pormenor, meio delirante. É que a oiço cantar com cada vez mais frequência e não duvido, nem por um instante, que é ela a cantar só para mim. Sinto que mudei, já não sou o mesmo. Pressinto que alguma coisa boa está ainda por suceder. E desta vez não vou ter medo de me deixar encantar.

Fim de publicação

terça-feira, maio 22, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #10



Eva Nascente, depoimento
Os humanos falam às vezes da Fénix, a ave mitológica que nasce das próprias cinzas e que, é claro, não existe. Será assim tão difícil aos homens entenderem que todos eles, em cada dia, a cada momento, nascem de novo, que não há apenas uma vida ou uma morte na vida mas várias, que sobre as cinzas de um fim se está constantemente nascendo de novo? Que a Fénix existe em cada um de nós? Foi isso que se passou comigo, afinal. Vi os meus planos caírem por terra e o meu amor ser desprezado. Vi desabar o mundo que criei. Vi esgotarem-se a curiosidade, a euforia, o deslumbramento, a paixão, a esperança, a teimosia, a ilusão. Fui até onde podia ir, até que fiquei sem forças. E nessa altura precisei de recuperar a minha essência, aquela de que julguei não precisar mais. Abandonar o mundo dos homens foi a melhor coisa, a única coisa a fazer. A esse gesto os homens chamaram de morte, eu insisto em chamar-lhe renascimento. Precisei de regressar ao que sempre fui e serei, para novamente me afirmar Eva Nascente. Não sou de facto a mesma que se juntou a um grupo de músicos, por amor à aventura, por amor. Sou outra, porque noutra me tornei em resultado de todas as vivências e sentimentos. Outra, recomeçada sobre as cinzas de mim, porém a mesma, porém outra. As diferenças são fáceis de encontrar. Olho mas o meu modo de olhar é diferente, acredito, mas já não acredito no mesmo, ignoro muita coisa, mas já não posso ignorar de novo aquilo que passei a saber. No fundo, acho que é a isto que os homens chamam de “pecado original”.

E no entanto, algumas coisas parecem teimar em prevalecer. Como o meu amor por ele, que decidi não ignorar. Esse erro pertence-lhe a ele, não a mim. E é por isso que de vez em quando vou visitá-lo, sem que no entanto me deixe ver. Já não quero renegar o mundo a que pertenço em nome do amor que sinto. Mas permito-me ainda imaginar que o nosso reencontro poderá acontecer de novo, um dia. Quando for a vez dele renascer das cinzas, e puder acreditar que eu existo. Talvez aconteça em breve, vejo que também ele está a mudar. É com toda a ternura que às vezes me chego bem perto e lhe sussurro, meu amor, se me quiseres de volta, se me procurares, assim me terás. Estou perdida apenas para me deixar encontrar.

Próxima (e última) publicação: 25 de Maio

quinta-feira, maio 17, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #9



Homem, depoimento
O desaparecimento dela foi ainda mais insólito que o aparecimento. Não sei explicar para além do que vi acontecer, foi precisamente no último concerto da digressão. Da parte dela não houve um sinal, um olhar, um sorriso. Não houve nada, aliás, a partir de certa altura a Eva pareceu desistir de mim, e a mim pareceu-me que isso me agradava. Naquela noite como em tantas outras estava apenas concentrado no espectáculo, contente porque depois daquele concerto podia dissolver a banda e esquecer tudo. Cumprindo o alinhamento, fiz soar os acordes de um dos nossos maiores êxitos. Aquela canção já tinha alguma má fama, porque era tão potente, tão brutal, que quase sempre os maiores excessos do público aconteciam nesta fase da actuação. E assim foi novamente. Os seguranças entre o palco e as grades pareciam frágeis para a enorme massa humana que se agitava em frente a nós. Noutros concertos, por várias vezes tinha sentido medo enquanto tocávamos aquele tema, mas naquela noite o medo dissipou-se. Eva parecia maior do que era na realidade, parecia elevar-se sobre o público enquanto cantava, o seu domínio era total. Perto do final da música juro que os seus pés se ergueram do chão, os braços abertos como se abraçasse todo o público. Todos sentimos que alguma coisa estava para acontecer. Parámos de tocar mas ela continuou a cantar. E sem qualquer hesitação, Eva lançou-se em voo sobre a assistência, a minha Eva Nascente, como gostava de se denominar, mergulhou naquela confusão de pernas, braços e rostos, naquela enorme massa humana, disforme por conta das emoções, dos encantamentos, da música. Deixou-se cair bem no fundo de todos eles, para longe de mim, para não voltar mais. No meio do caos que se seguiu, enquanto polícias e membros da equipa lutavam desesperados para afastar o público do local onde ela tinha mergulhado, deixei-me ficar sozinho em cima do palco, ouvindo apenas o silêncio que naquela hora se abateu no fundo de mim. Calaram-se a cólera, a revolta, o orgulho, a incompreensão. Soube desde logo, com toda a segurança, que podiam passar o recinto a pente fino, jamais a encontrariam. Estava perdida para sempre, e eu estava sozinho.

Próxima publicação: 22 de Maio

terça-feira, maio 15, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #8



Eva Nascente, depoimento
A minha maior ilusão foi acreditar na existência de um lugar, um tempo, em que pudéssemos estar juntos. Por isso me mantive ao seu lado, esperando que todo aquele ressentimento e preconceito cedessem, mais tarde ou mais cedo, ao amor que ainda existia. Quem disse que não há magia no mundo dos humanos? Querem maior encantamento do que a esperança? Deixei-me dominar por esse encantamento, e ingenuamente comecei a tentar convencê-lo a partir comigo. Afinal, se eu me tornara um pouco mais humana, porque não poderia ele ser um pouco mais… mágico? Como desejei então ter todo o poder que os homens atribuem às fadas! Conseguir mudar, por força da magia e para o bem dos dois, o seu modo de pensar, agir, sentir. Mas depressa me desiludi. A todas as minhas propostas de começarmos do zero algures onde nós próprios fôssemos mais importantes do que as nossas diferenças, ele respondia-me com palavras amargas, cheias de escuridão. Ou então fazia pior, não me olhava de frente, oferecia-me o mais frio dos desprezos, gelava-me por dentro. Entendi que mais uma vez procurava sucesso numa missão impossível. Afinal, se ao longo de todo este caminho eu nunca pude modificar a minha própria essência, como poderia ser capaz de modificar a dele? Ele optou por duvidar da minha existência. A mim só me restou duvidar do seu amor. E dando esse amor por inexistente, já nada mais havia para mim no mundo dos homens. Tudo o que restou fui eu própria, ainda que perdida no meio de muitas ilusões. O cansaço tomou conta de mim e apenas uma ideia começou a orientar-me: regressar a casa.

Próxima publicação: 17 de Maio

quinta-feira, maio 10, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #7



Homem, depoimento
Realmente vivemos num mundo estranho. Enredamo-nos tanto nos nossos compromissos que eles ganham mais importância que a nossa própria vontade, impondo-se sem direito a contestação sobre as necessidades mais básicas, humildemente suplicadas pelos nossos corações. Só por isso se explica que, mesmo depois de tudo o que descobri e decidi, não tivesse dissolvido a banda de imediato. A verdade é que, mesmo com todos os problemas que surgiam, não podíamos cancelar os concertos. Também por conta destes problemas, a banda estava no auge do sucesso e havia contratos a cumprir.

Continuámos a tocar, mas as actuações eram cada vez mais curtas porque se tornava impossível controlar a multidão. O meu afastamento dela também se reflectiu na música e da pior forma possível. Eu ficava furioso, acreditava piamente que ela fazia de propósito para deprimir as pessoas. Eva cantava com uma melancolia na voz que nos trespassava os ossos. Vi muitas vezes os músicos a chorar enquanto tocavam, mesmo no meio das músicas mais agitadas, e sem conseguirem compreender porquê. As reacções do público também se alteraram, e se por um lado diminuíram os desacatos e tentativas de assassinato, a taxa de suicídios durante e depois dos concertos começou a aumentar de forma assustadora. Em consequência disso surgiram aquelas organizações de pais, que reclamavam pelo nosso silêncio total enquanto músicos. Nem que para isso tivessem que nos matar...

Por essa altura, vários jornalistas, comentadores, apresentadores de televisão, despertaram para a mesma pergunta que eu próprio tinha feito: quem é esta Eva, de onde surgiu? É claro que não posso afirmar isto como verdade rigorosa, mas sempre suspeitei que a minha descoberta da verdade se assemelhou à bola de neve que cai do cimo do penhasco. Vem rebolando por aí abaixo, recrutando outras iguais a ela, e tornando-se cada vez maior. Fui apenas o primeiro a fazer a pergunta, e ao fazê-la quebrei o encanto que abriu outros olhos. Começaram a surgir más referências à nossa banda um pouco por toda a imprensa. As críticas nos jornais e revistas, de apoteóticas passaram a demolidoras. Acredito que alguns desses críticos tenham ficado desencantados, tal como eu. Outros, se calhar, pura e simplesmente eram feitos de uma matéria que não se deixava encantar, e apenas permaneciam calados à espera do momento oportuno para se fazerem ouvir. Da Eva disseram-se coisas terríveis. A sua beleza, que em boa verdade sempre foi impossível de contestar, passou a ser escamoteada em todas as revistas. Aliás, foi numa dessas revistas cor-de-rosa que primeiro surgiu aquele comentário venenoso, em letras pequeninas, ilustrando uma foto: “parece uma bruxinha”. Aquela legenda, não sei como, tornou-se na ideia dominante, e logo foi veiculada a ideia de que aqueles olhos doces eram apenas a máscara que escondia todo o mal. Juro que nunca a denunciei, esse peso não carrego na minha consciência. Mas identificava-me totalmente com tudo o que dissesse mal dela, mesmo que com isso também eu e a banda surgíssemos prejudicados. Tinha um prazer sórdido em mostrar-lhe todas as críticas e às vezes inventava outras, ainda mais ofensivas. Menti dizendo-lhe que já não a amava, agora que sabia a verdade. Que as suas mentiras estavam à vista de todos. Que todo o seu mundo era uma fraude que não existe e nunca existiu. Mascarei assim o que sentia, defendi-me como podia, não dela, que jamais me quis fazer mal, mas da dor mais destruidora de todas, a de nos sentirmos traídos por quem amamos.

Próxima publicação: 15 de Maio

terça-feira, maio 08, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #6



Homem, depoimento
A cada pergunta minha surgiram verdades que me esmagaram. À medida que me dava conta do seu mundo de encantamentos e magia, eu pelo contrário descia cada vez mais à terra e compreendia como a nossa história era impossível. Não tenho dúvidas hoje em dia que começou naquela conversa o fim do seu encantamento sobre todos nós. Quanto a mim, descobrir a verdade foi revoltar-me com ela. Continuo a não saber dizer quem, ou o que é ela realmente. Apenas lamento que não tenha conseguido deixar-me estar como estava, sem ter que a encerrar numa definição. Mas não fui capaz, afinal sou apenas humano. Precisei ali mesmo de encontrar um nome para lhe chamar, ou fada ou bruxa, e bruxa foi a minha escolha. Decidi naquele momento que o que sentia não era amor, mas feitiço. E assim com tudo explicado e devidamente encaixado nos seus lugares, apenas quis parar de sofrer. Encerrei a discussão dizendo-lhe o pior de tudo, já não existes para mim.

Eva Nascente, depoimento
A rejeição ditou o fim do meu encantamento. Não aquele que se soltava durante os concertos, porque esse, como já expliquei, foi involuntário, imprevisível, diferente conforme os corações que o recebiam. Refiro-me ao encantamento em que eu própria andei envolvida, esquecendo-me da minha essência e julgando poder assim viver feliz. Não se pode nunca renegar a matéria de que somos feitos, foi essa a lição que tirei a duras penas. E no entanto, um dos meus desejos continuava a ser satisfeito: o de aprender a ser humana. Neste meu aprendizado pude então conhecer o outro lado desta forma de existência, pela mão do mesmo homem que me dera a conhecer o amor. Em vez de paixão, desprezo. Em vez de comunhão, solidão. Pela primeira vez em muito tempo recordei o mundo que é o meu com saudade, outro sentimento que aprendi a conhecer. O problema é que também nesse mundo me sentia agora uma estranha. Ficou então claro para mim que pelos meus próprios passos me tornara numa estranha entre ambos os mundos.
Próxima publicação: 10 de Maio

quinta-feira, maio 03, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #5



Homem, depoimento
Os nossos concertos tornaram-se cada vez mais policiados, numa tentativa às vezes vã de controlar o incontrolável. Chegava a ser cómico, dir-se-ia que havia tantos polícias quanto espectadores. O bizarro é que, muitas vezes, os próprios agentes se deixavam contagiar por aqueles fenómenos de histeria colectiva, e com a agravante de estarem armados. Foi muito bem abafado aquele episódio do polícia que atingiu a tiro vários casais de espectadores, apenas porque estavam a beijar-se. Outra coisa que me incomodava um pouco é que o resto da banda parecia divertir-se, não se deixando impressionar com as tragédias que por vezes aconteciam entre a assistência. O nosso baterista deixou de consumir droga antes dos concertos. Também deixou de se embebedar a seguir. Dizia que já não precisava, a música que tocávamos era suficiente. A Eva estava cada dia mais resplandecente, uma verdadeira deusa, especialmente quando sorria para mim. Era quase sempre impossível não me perder nesse sorriso, deixar-me levar pela onda de bem-estar que ela me provocava.

Mas tornou-se impossível permanecer de olhos e ouvidos fechados, quando chegavam cada vez mais informações sobre gente que morria no meio daquele caos. Surgiram os primeiros concertos cancelados, e as sombras começaram a tomar conta do nosso paraíso. Mesmo assim precisei de tempo para lhe fazer directamente a pergunta que me consumiu durante algum tempo, quem és tu afinal. Está enganado quem pensa que precisei de ganhar coragem para perguntar. Tal como alguém já disse em tempos, do que eu precisei foi de coragem para ouvir a resposta.

Eva Nascente, depoimento
Perguntou-me quem eu sou, pergunta mais simples parece não haver, se bem que mesmo os homens nunca têm apenas uma resposta para ela. Respondi-lhe com a verdade. Sou uma das muitas realidades deste mundo, sou a vontade de ser mais do que aquilo que estou destinada a ser, sou o desejo de aprender, sou a mulher que nasceu do teu amor, aquela que acordaste por dentro, aquela que te acordou por dentro, sou a tua inspiração. Sou corpo e espírito, tal como tu. Mas o meu corpo e espírito é feito do que julgas não existir, e te habituaste a ver apenas em sonhos, e a chamar-me fada, ou bruxa, feiticeira, duende, extra-terrestre. A minha verdade é esta, foi esta que lhe entreguei. E também eu perguntei: homem, qual vai ser a tua verdade? No que é que te vais tornar, agora que sabes quem sou?

Senti o abismo que se abria entre nós à medida que as minhas respostas apenas geravam mais interrogações. Percebi então o quanto estava longe da existência humana, que julgava ter alcançado tão facilmente. Afinal, os nossos sentimentos eram a base que sustentava uma realidade tão frágil que a qualquer momento poderia desfazer-se. Tive medo, senti o chão a fugir-me dos pés. Se também ele, como a maior parte dos homens, concluísse que eu não existo, como poderia eu, de facto, existir.

Próxima publicação: 8 de Maio

quinta-feira, abril 26, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #4



Eva Nascente, depoimento
A verdade é uma coisa que não se sabe em que mundo habita, sabe-se apenas que ninguém é dono dela. Também eu não a possuo. A música que criámos foi o resultado de nós dois e feita com todo o amor que tínhamos um pelo outro. Na essência dessas músicas podemos encontrá-lo a ele com o seu imenso talento, e encontro-me eu com a minha magia. A essência de qualquer um de nós manifesta-se sempre, não há como evitá-lo, eu não sou excepção. Mas a nossa história é de excepção, e assim se tornou também a música que criámos. Como poderíamos saber, ele ou eu, o que viria depois? Quando começámos a compor juntos surgiu a música que nunca antes se tinha feito. É sempre assim com aquilo que decidimos fazer ou ser em cada momento, é impossível prever que mundo novo vai surgir. Criámos uma nova realidade que trouxe as suas consequências. O que aconteceu nos concertos é na verdade muito simples de explicar. A música soltou a magia que está na minha essência, que voou sobre as cabeças, inundou os espíritos. Era um encantamento, sim, mas não o será toda a música, independentemente de quem a faça nascer? E não podemos esquecer o amor que nos unia. Estávamos de tal modo encantados um pelo outro que cada actuação em palco era o equivalente ao sexo que marcava os nossos momentos de intimidade. A nossa música reflectiu também aquilo em que nos tornámos quando nos perdermos de amor um pelo outro. Dir-se-ia então que um encantamento como este só poderia despertar o bem, nunca o mal, e no entanto vimos pessoas a reagirem de formas muito más… Pois bem, assim como se diz que cada cabeça a sua sentença, eu passei a acreditar que também é assim com a magia. O mesmo encantamento não resulta igual em duas pessoas. Depende do que encontra quando lá chega, o encantamento, à pessoa. Não há bons ou maus encantamentos, magia branca ou magia negra. A magia que chegou a cada um fez o efeito conforme a essência dos corações. Para uns despertou a alegria, para outros a amizade, o amor, a libido, e para outros ainda, o ódio, a violência, a inveja, a tristeza. O que faz a diferença não é a magia, é a essência de cada um. Não fosse eu a Eva que sou, não fosse ele o homem que é, esta história não teria existido, mas outra.

Próxima publicação: 3 de Maio

quinta-feira, abril 19, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #3



Homem, depoimento
A banda ganhava cada vez mais sucesso. Embora as músicas fossem as mesmas de sempre, a voz da Eva dava-lhes uma nova alma. Bem sei que qualquer um que suba a um palco passa por uma transformação. Deixamos de ser nós próprios, vestimos um personagem, brilhamos como deuses vindos de outro mundo. Um brilho que na verdade não é mais do que o olhar dos comuns mortais que nos cercam, e assim nos consideram seres de outro mundo. À nossa dimensão também já tínhamos essa experiência. Mas mesmo assim, desde logo percebemos que com a Eva passava-se algo de diferente. O que era estranho e fascinante ao mesmo tempo, é que também nós, em cima do palco, acabávamos reduzidos ao mesmo olhar de admiração do nosso público. Parece um lugar comum dizer que os olhos dela brilhavam, que o cabelo dela esvoaçava, que às vezes parecia levitar. São comentários possíveis de fazer sobre qualquer cantor em qualquer concerto. Mas ela era… simplesmente deslumbrante. Rapidamente se tornou num fenómeno de popularidade. Os concertos tinham cada vez mais gente, uma legião de fãs fascinados, dirão uns, apaixonados, dirão outros, hipnotizados, embruxados…

Mas as coisas verdadeiramente estranhas, só começaram a acontecer depois de eu e ela compormos em conjunto. Por essa altura a banda já estava com muito sucesso. Regravámos o primeiro disco com a voz dela e duplicámos as vendas em relação à primeira edição. Logo de seguida gravámos outro álbum com novos temas, e no mesmo ritmo frenético saímos em digressão para o promover. Logo nos primeiros concertos, ao som destas novas músicas, vimos coisas que nunca imaginaríamos. Acontecia de tudo. Algumas pessoas ficavam imensamente felizes, vinham agradecer-nos no final dos concertos como se fôssemos todos velhos amigos, de tempos imemoriais. Espectadores abraçavam-se entre si, e sei que em muitos casos se lançaram as sementes para grandes e sólidas amizades, até mesmo amores para a vida toda. Outros ainda lançavam-se em práticas sexuais desenfreadas, aliás, os primeiros problemas com a polícia foram justamente por causa das orgias que aconteciam nos recintos dos espectáculos. Mas aconteceram outras coisas que poucos conhecem. Uma delas é que ainda hoje continuo a receber correspondência de pessoas que juram, pela própria vida, ter visto Deus a assistir aos concertos. E a ser verdade o que afirmam, também Jesus Cristo, o Buda, a Virgem Maria, o profeta Maomé, e mesmo Jim Morrison terão vindo de propósito para nos ver e ouvir...

Havia depois a outra face desta moeda, havia os outros. Que incendiavam os cabelos do vizinho da frente. Que se lançavam à pancada sem qualquer motivo. Que choravam e desesperavam, que tentavam o suicídio. O assassínio. Meia hora de concerto era o suficiente para ver surgir entre a assistência, de forma descontrolada, o espectáculo de todas as emoções humanas, das melhores às piores. Era o caos. Os relatos das primeiras mortes foram para mim o fim do estado de graça. Foi nessa altura que comecei a ver para além da paixão, que tinha tomado conta de mim a ponto de pensar que não precisava de mais nada na vida. O que se passava de tão diferente nos nossos concertos? Era apenas música, porque é que sucediam tantas coisas estranhas? A estas perguntas seguiu-se outra, sorrateira, uma pergunta que já se impunha desde o primeiro dia: quem era Eva, de onde tinha vindo?

Próxima publicação: 26 de Abril

quinta-feira, abril 12, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #2



Homem, depoimento
O que se passou a seguir é muito fácil de descrever: não houve tempos mais felizes. Quando evoco essa época sinto um torpor de contentamento que ainda hoje me sustenta. A Eva entrou nas nossas vidas, na nossa banda, na minha cama, no meu coração. Cantava tão bem, foi apenas natural colocá-la como vocalista. As nossas canções ganharam outra alma, o público adorava-a. Todos a adorávamos. Era como se qualquer pessoa que a conhecesse ficasse irremediavelmente apaixonada por ela.

Eva Nascente, depoimento
Jamais imaginei que fosse assim. Vivi aqueles primeiros tempos com a sofreguidão de um recém-nascido. E no fundo foi isso mesmo que me aconteceu, eu que nunca nasci e jamais morrerei, pude com a minha decisão de me juntar aos homens ter essa experiência, a do nascimento. Foi por isso que atribuí a mim própria um novo nome: se antes era Eva sem ter nascido, depois de nascer tornei-me Eva Nascente. Eva Nascida? É claro que não. Eu, assim como todos os homens, depois de nascer uma vez nunca mais deixei de o fazer. Nascente, como a nascente dos rios, porque uma das coisas que descobri é que, a cada nova experiência vivida, nascemos daquilo que somos para ser aquilo em que nos tornamos.

Nesta minha condição pude experimentar sentimentos até então desconhecidos. A paixão. A alegria. O desejo. O amor. A angústia. A decepção. A lucidez. Quis e acreditei que eu também podia pertencer à espécie humana. Andava tão encantada nesta minha nova vida, que me parecia ser nada o que antes eu era. Olhava para o meu passado e parecia-me ter antes vivido num mundo de sonho, um sonho do qual tinha agora despertado, regressando finalmente à vida real. Olhava para o meu amor e via nele a razão de ser de tudo, o grande responsável por trazer à luz do dia tudo o que em mim se encontrava adormecido. Foi por isso coisa natural querer ajudá-lo no que pudesse fazê-lo feliz. Os homens não vêem bem certas coisas, nem mesmo usando óculos, mas eu entendi muito bem que quando ele sobe ao palco, a sua essência surge em todo o seu esplendor. Tocar e cantar, receber a admiração, os aplausos e a alegria de quem o ouve, em conjunto com os seus companheiros, eis como se consuma a sua existência. Quis ajudá-los neste processo de tornar essência em existência, contribuir para aquilo que o torna tão feliz. E convenci-me de que também eu tinha encontrado a felicidade eterna, acreditei sinceramente que era humana. Só que, no meu desejo de concretizar a essência dele, esqueci-me da minha, e humana não sou. Foi esse o meu erro. Não me arrependo de nada, mas reconheço que de todos os sentimentos humanos que pude experimentar, nem todos consegui suportar. Só mesmo um ser humano para ser esmagado pela dor, sofrimento, ódio, e mesmo assim, continuar vivo.

Próxima publicação: 19 de Abril

quinta-feira, abril 05, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #1




Homem, depoimento
Entrámos por aquela estrada porque pensámos em cortar caminho e ganhar tempo. Não esperávamos que mais à frente ela quase desaparecesse, ficando pouco mais do que um carreiro no meio da vegetação. Muito rapidamente ficámos perdidos, e uma floresta que nunca antes tínhamos notado, praticamente decidiu engolir-nos. Como um azar nunca vem só, a gasolina faltou e nesse dia não conseguimos chegar a tempo de fazer o concerto. Enquanto um de nós, já não me lembro qual, foi à procura de um posto de combustível, ficaram os outros a tomar conta dos instrumentos. Nessa altura ainda era pouca coisa mas era tudo nosso. Agora que penso nisso não era bem assim, a bateria ainda não estava toda paga. Na verdade, tínhamos mais inspiração do que dinheiro. Mesmo assim já tínhamos gravado um disco, tocávamos todos os fins-de-semana, e embora muitos olhares objectivos nos dissessem o quanto este projecto era inviável, tínhamos empenhado o nosso dinheiro, o nosso tempo, toda a nossa alma para viver apenas da música que criássemos. Sentíamo-nos autênticas estrelas. Não interessa se éramos os únicos a achar isso, andávamos felizes assim.

Mas nada disto nos poupou a ficar horas e horas à espera da gasolina. Para passar o tempo resolvi tocar guitarra. E foi logo de seguida que a Eva apareceu. Ela própria afirmou que tinha vindo atraída pela música, quanto a nós, acho que ficámos desde logo atraídos por ela. Eu especialmente. Sentou-se ao pé de mim e começou a cantar. Todos sabem hoje em dia a voz maravilhosa que ela tem, ou pelo menos deveriam fazer um esforço por se recordarem. Mas aqueles primeiros instantes foram especiais, porque ela cantou só para nós. Parecia que até o ar se tinha aquietado para que ela se pudesse ouvir melhor, foi um momento… mágico. Quando o nosso companheiro voltou com a gasolina e pudemos seguir viagem, ela acompanhou-nos com a mesma naturalidade com que tinha surgido dos arbustos. É um pouco bizarro contado assim, mas de facto nunca ocorreu, a nenhum de nós, perguntar-lhe de onde vinha, o que fazia, o que pretendia. Embruxados? Enfeitiçados? A isso não sei responder. A quem interessar saber como começou, aqui está a realidade, tal qual aconteceu.


Eva Nascente, depoimento
A explicação é muito simples, quis saber como era do outro lado. A vontade de conhecer outros mundos não pertence só aos homens. Este mundo que é o meu já não tinha segredos para mim, o mundo dos homens tinha tudo por desvendar. Acusam-me de os ter atraído para mim mas isso não é verdade. Foi ele, com a música que tocava, que me retirou desde logo todas as forças para resistir. A primeira a ser enfeitiçada fui eu. Sempre me ensinaram que a minha espécie e a dos homens não pode co-existir, que vivemos em dois mundos opostos, mas ao som da música parece-me claro que existe pelo menos esse ponto em comum. Foi por isso que comecei a cantar. Depois… Eles eram uma espécie de ponte que me podia levar sem suspeitas para um mundo cheio de coisas para explorar. Tinha sede de aprender, ainda tenho. E no fundo foi só permitir que algum encantamento lhes entorpecesse o espírito, os deixasse predispostos a levar-me com eles. Mas também eu já os acompanhava meio entorpecida, também eu parti sob encantamento.

O mundo dos homens tornou-se ainda mais fascinante por causa daquele homem em particular, é um facto que não pretendo negar. Por causa disso mesmo, e apesar das adversidades, fui duplamente abençoada. Naquele dia abriram-se-me as portas de dois mundos: uma para o mundo dos homens que tanto queria conhecer; outra para uma forma de emoção que até então jamais sentira. Nunca foi minha intenção provocar qualquer mal. E em minha defesa o afirmo, foi sobre mim que se abateu o maior dos sofrimentos.

Próxima publicação: 12 de Abril

segunda-feira, abril 02, 2012

Eva Nascente. Um conto com banda sonora #Prólogo

Primeiro aviso à navegação: Resolvidas que estão as questões da propriedade intelectual deste sítio, irei nos próximos tempos publicar alguns contos, na gaveta desde 2005-2006, período em que praticamente todos foram escritos ou finalizados. Chamo-lhes contos porque em termos formais é com isso que se parecem. Já a pensar em publicá-los aqui, obriguei-me recentemente a relê-los e a conclusão a que chego não é muito diferente daquela a que cheguei em outros momentos. São o que são, nem especialmente brilhantes nem especialmente maus, mas são meus. E já que nunca foram impressos em papel, pois que chegue enfim a sua hora de serem apresentados aqui, para leitura daqueles que para isso tiverem disponibilidade, interesse e paciência.

Segundo aviso à navegação: Não percebo nada de música. Nada mesmo. A música de que gosto é sempre porque sim, estou completamente à margem de gostos mais requintados e elitistas em matéria musical. A música clássica aborrece-me (excepto as quatro estações do Vivaldi e o requiem do Mozart. Porquê? Não sei. Porque sim). O jazz para mim é pior ainda, acciona um botão que deve existir algures num dos meus lobos temporais e que me desliga o cérebro, deixando-me a navegar em pensamentos que variam entre a roupa que está para passar a ferro, a necessidade de aproveitar a hora de almoço do dia seguinte para ir à depilação e, quando muito, uma concentração obssessiva pelos riscos que estão no soalho/parede/tecto ou outro sítio qualquer para onde esteja a lançar o meu olhar bovino. Dito isto, a verdade é que gosto de ouvir música e que me estou a borrifar se a dita é comercial ou não é. E portanto, não percebendo nada de música mas gostando de a ouvir e de a cantar, sou uma ouvinte inconstante e incoerente, que tanto gosta de pop como de rock, ou de música portuguesa (desde que não seja o André Sardet, pelamordedeus) e por aí fora. Gosto no fundo de qualquer coisa que calhe a tocar-me no coração, sem grandes preocupações de erudição e quem sabe, ande por aí a música jazz que consiga entrar sem desligar o botão. Ouviremos.

Adiante. Pode não parecer mas do que eu quero mesmo falar é de literatura. No meio disto tudo, a dado momento dei comigo a gostar muito de ouvir o álbum "Fallen", dos Evanescence e a descortinar no meio daquelas canções - e também dos videoclips, com uma imagem muito própria - uma história para se contar. O conto que construí a partir daquelas músicas é o que irei começar a publicar aqui durante esta semana e que será postado em 11 partes, tantas quantas as canções que integram o "Fallen". A cada parte corresponderá uma música do dito álbum. (E sim, eu sei que o José Luís Peixoto já fez uma coisa semelhante ou igual com os Moonspell. Não é o mesmo, nem pretende ser).

Último aviso à navegação: Depois de ter escrito este conto nunca mais ouvi os Evanescence, desconheço o que é que tocam hoje em dia e nem sabia que ainda existiam como banda, até esta notícia de que vinham ao Rock in Rio em Maio (já tinha avisado, eu no que toca à música, não tenho espinha dorsal).

De maneiras que é isto. Depois desta conversa toda era só para dizer que "Eva Nascente. Um conto com banda sonora" vai começar a ser postado na próxima 5.ª Feira, 5 de Abril, e terminá a 25 de Maio, data em que os Evanescence sobem ao palco do Rock in Rio.

segunda-feira, março 12, 2012

Cais 14

Cais 14 é o nome do cais da vila de Alhandra. Foi também o título de um espectáculo que aconteceu este fim-de-semana naquela localidade, um projecto de teatro comunitário construído de raiz por quem nele participou. 111 pessoas, dos muito jovens aos muito idosos, numa onda positiva de vontades que todas juntas reavivaram memórias e identidades, histórias e personagens do imaginário de todos quantos ali têm levado as suas vidas, virados para o rio Tejo.

Os textos, tal como tudo o resto, foram construídos colectivamente. "Cada um de nós é um rio. Cada um de nós é um cais.", foi um pedaço que integrou um dos momentos do espectáculo, uma ideia que desenvolvi a partir da célebre citação de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."

Embora todo o texto seja talvez mais compreensível para quem esteve envolvido no projecto e conheça a terra, ainda assim deixo-o aqui na sua versão integral, mais que não seja porque, na sua conclusão final, podemos enquadrar a vida de qualquer um de nós:

CAIS 14

"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."

O Cais 14, em Alhandra, é a margem que comprime o Tejo e o empurra para o seu destino. Vivem assim enlaçados, o rio e o Cais, como se de um namoro se tratasse.
Este namoro entre o rio que tudo arrasta e o Cais que o comprime construiu a vida de muitas pessoas ao longo dos tempos.

À beira deste Cais construíram-se as vidas de agricultores e pescadores, atletas e escritores, músicos, operários, homens que nunca foram meninos, mulheres que sempre tiveram força.

Todos aqui vieram em algum momento. Entraram nos barcos e lançaram as redes ao rio. Nadaram para vencer o medo, para vencer o frio, para vencer o rio. Vieram ao nascer do sol para lavar a roupa, chegaram ao fim do dia para chorar a dureza da vida. Vieram durante a noite para conversar, conspirar, rir, cantar e dançar, dormir. Amar.

A partir do Cais 14, os homens e as mulheres buscaram no rio o seu sustento, mas também a sua inspiração. Para isso invocavam as Tágides, que dizem ser as ninfas do Tejo. O alento dos mortais sempre pareceu mais fácil com a ajuda da divindade. E por isso elas existem, e são belas, e também elas gostam de se sentar no Cais 14 a contemplar o rio.

Mas de onde vem, afinal, a inspiração? De onde vem o talento? De onde vem o alento para levantar todos os dias e trabalhar, construir a própria vida? Será que vem do rio, será que vem das ninfas? 
Na verdade, tudo o que se constrói nasce da vontade dos homens e das mulheres. São essas vontades que ditam o que chega ao Cais e o que abandona o Cais. Foram essas vontades que construíram, junto ao rio, a casa da Música, do Teatro, do Desporto, da História.

E o que existe mais, para além das vontades? Existe o riso. A esperança. A perseverança. A solidariedade. A dança. O olhar. O beijo. De tudo isto se fazem as vidas que chegam e partem do Cais 14.
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as vidas que em torno dele se constroem.

Cada um de nós é um rio.

Cada um de nós é um Cais.

terça-feira, fevereiro 28, 2012

sábado, fevereiro 18, 2012

Coisas que me acontecem

Peço muita desculpa pelo atraso, disse ela chegando um pouco ofegante, tive que ir ali comprar um relógio e perdi a noção do tempo...

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Que é feito, meu deus, do amar-te assim perdidamente?...

Ora bem. Deixai-me dizer antes de mais nada que vou escrever este post com o coração a sangrar. Quase o mesmo como se viesse para aqui escrever, ah e tal, o Saramago afinal não presta. Que eu adoro estes senhores, meus senhores. Amo os Trovante, amo o que esta gente fez pela música portuguesa, enfim, apreciei mais ou menos algumas opções musicais das suas carreiras a solo, alguns trabalhos de cada um deles nem sempre me agradaram por aí além, mas sempre com respeitinho, porque a gente pode não se identificar com as coisas, mas ainda assim reconhecer que elas são boas na mesma.



Agora, isto? Que raio de canção é esta? "Gosto de ti | quando és razoável | gosto de ti | volátil e maleável | E só assim | é viável | fazer um sisudo amável".

Repito, é com o coração a sangrar que afirmo que isto é das canções mais cretinas que tenho ouvido nos últimos tempos. A sério, para mim está quase ao nível das canções do André Sardet, criatura cuja... ehr... hum... enfim... música, consegue ter em mim o efeito de me transformar numa potencial assasina em série, porque tudo o que me apetece quando oiço aquilo é encontrar uma G3 e desatar a fuzilar pessoas.

Isto é suposto ser uma canção de amor? Só se for de um amor molancho e desenxaibido, sem tesão, desinteressado e desinteressante. "Gosto de ti quando és razoável"?! Razoável?!!!... Ah e tal, e eu gosto é que sejas volátil e maleável, não fazeres muitas ondas e não me maçares muito, assim sossegadinha é que me agradas, nada de maluqueiras, deixa-me lá ler o jornal descansado e está quieta com as mãos.

Se fores bem comportadinha, será viável na nossa relação amorosa que eu tenha a complacência de sair do meu estado de sisudez e tornar-me num sisudo amável... Só para ti, minha querida. A sério. Isto mais parece uma carta comercial. Só falta acrescentar, com os melhores cumprimentos, o chefe do conselho de administração da empresa... Que desgosto, meu deus.

Tudo bem, a gente cresce. Os amores não são sempre um estado inflamado de paixão e o estado inflamado de paixão pode nem vir a ser o melhor dos amores. Também já não me estou a ver a andar de carro por caminhos de terra batida no meio da noite escura, ou pior ainda, em plena luz do dia, e a ser muito pouco razoável ou volátil, embora em muitos momentos tivesse que ser maleável, sobretudo porque os bancos não rabatiam por completo o que era uma chatice... Onde é que eu ia? Ah! Exacto, no fundo, o que eu queria dizer é que as coisas têm o seu tempo (o que foi não volta a ser, e tal...), que o amor tem muitas dimensões e que pode ser autêntico e intenso em muitas diferentes vivências. Claro que sim, está tudo compreendido e vivido, aliás.

Mas porra, há limites. Amável? Viável? Ra-zo-á-vel? E uma gaja dar-se a este trabalho todo para quê? Para ter como único retorno um sisudo amável? Oh meus amigos, tenham paciência. Vão ser sisudos e amáveis para o raio que vos parta. Apaixonem-se a sério ou apanhem um desgosto amoroso de caixão à cova a ver se sai alguma canção mais interessante. Eu acredito em vocês, cá estarei para vos aplaudir.

No entretanto, vou ali ver mais um video do Tiago Bettencourt ao youtube e ter algumas fantasias eróticas muito pouco razoáveis, que o homem até a cantar canções do Tony de Matos me consegue tirar do sério.

Life is a cabaret, old champ

Dizia ontem a encenadora, no decorrer do ensaio: não se preocupem em experimentar, é para isso que cá estamos, isto é como na vida, temos que ir tentando até acertar. Por isso é que mulher NENHUMA deve ficar com o primeiro homem que lhe aparece, deve namorar, diversificar, conhecer...

Nunca tinha pensado nisto assim, mas realmente, quase a tornar-me numa mulher de meia-idade, constato o óbvio pelas sábias palavras daquela pessoa.

Não é que eu seja uma solteirona.

Sou é uma pessoa rigorosa e como tal, ando numa fase prolongada de investigação e de pesquisa!... ;-)