Hoje houve greve outra vez. Houve quem fizesse e quem não fizesse, há
quem continue a acreditar na greve como uma boa forma de chegarmos a algum lado
e há quem ache que esta é apenas uma maneira de marcar passo sem sair do mesmo
sítio. Respeito a decisão de cada um, que isto é apenas a
democracia a funcionar, e ainda bem que assim é. Não é disso que me apetece
falar.
Concordo que os motivos para protestar são mais que muitos,
mas sobre isso também não tenho nada de novo ou interessante para dizer, e nessas circunstâncias, mais vale ficar calada.
A minha perplexidade conduz-me por vezes a outras reflexões. Vivemos
tempos muito desorientados. É sabido que pertencemos a uma época histórica onde
a incerteza face ao futuro é um dado adquirido, mas a verdade é que isso hoje
em dia atinge um extremo tal que compromete a vida do nosso dia-a-dia. Será que
posso fazer planos para daqui a três anos? Quais três anos, será que posso
fazer planos para o ano que vem? Mas como assim, para o ano que vem? Que
novidades terei eu hoje à noite que poderão pôr em causa tudo o que projectei
até ao final deste mês?
Provavelmente, estas são angústias em que muitos se revêm.
Aliás, o que vejo e oiço nas notícias diariamente leva-me a acreditar esta é
uma desorientação generalizada a toda a gente e isso, meus amigos, é que me
mete um medo do caracinhas. Quando digo toda
a gente falo das pessoas, pessoas de carne e osso que compõem o “povo” e a
“classe média”, das pessoas que compõem os “empresários” e os “patrões”, das
pessoas que compõem o “governo” e a “oposição”. Até das pessoas que compõem a
“troika” e os “mercados” e a “Merkel”, porque afinal, por muito que a gente se
esqueça disto (e como é fácil a gente esquecer-se disto), estamos sempre a
falar de pessoas – até mesmo a Merkel, até prova em contrário, é uma pessoa. E
todas estas pessoas, especialmente aquelas que era suposto saberem o que andam
a fazer, parece-me que andam todas desorientadas, sem terem a mínima ideia de para onde é que tudo
isto caminha. Ou seja, para onde é que caminhamos todos.
Não tenho conhecimentos suficientes de economia, de política
ou de finanças para sustentar uma opinião sobre esta crise, se ela é ou não substancialmente
diferente de outras crises vividas no passado. Mas o bom senso diz-me que as soluções a encontrar têm que ser
ajustadas ao período histórico em que estamos. E a sociedade, a conjuntura
económica, com toda a certeza, não é a mesma da que foi vivida noutros períodos de crise. Se o único casaco que tenho hoje para
vestir for aquele que tinha em 1982, quando tinha dez anos, não é preciso ser
muito esperta para perceber que vou passar frio, porque o casaco já não me
serve.
Julgo que isto também se aplica às formas de protesto social,
se não estiverem ajustadas no tempo, para que servem elas? Por isso o meu
pensamento a cada nova greve é sempre este: greve? Nos nossos dias? Sim senhor
é para protestar, está bem. O (des?)governo lá tomará conhecimento do descontentamento.
As pessoas sentirão que ao menos fizeram alguma coisa, que não se conformaram
às aparentes inevitabilidades. Mas, e depois a seguir? Nos dias de hoje, fazer
greve é para combater e modificar que circunstâncias? Para afectar que
entidades? Para influenciar o quê? Para produzir que resultados? Não consigo
responder, e sinceramente, ainda ontem ouvi um dirigente sindical a falar na
televisão que também não conseguiu.
Ah, mas eu tenho a certeza que tenho poder. Cada um de nós ,
aliás,tem imenso poder. E sem dúvida que se formos capazes de juntar o poder individual,
ganhamos todos um poder de influência que de outra forma não temos, claro que
sim. Como diria o outro, é só fazer contas. O poder do voto, pois sim, falemos
desse. Mas falemos também de um outro poder, que exercemos todos os dias, quase
tão constantemente quanto respiramos: o poder do consumo. O dinheiro que todos
os dias entregamos nos mais diversos sítios e que faz o mundo girar, como tão
bem cantava a Liza Minnelli. Afinal, se o que move o mundo é o capital e o consumo,
aquilo que decidimos consumir ou não consumir é o que faz tocar as bandas todas, não é? O que
acontecia ao mundo se por trás de cada acto de consumo estivesse uma
consciência cívica? Por exemplo, um gajo que não pague estacionamento numa zona
tarifada é multado e está lixado. Então, e se ninguém pagar? Sistemática e generalizadamente,
quero eu dizer. O que é que acontece? E nos transportes? E nos combustíveis? E
nos diferentes artigos à venda nos supermercados? E nos bancos? Não me entendam
mal, eu não estou a falar de anarquia. Pelo contrário, estou a falar de
organização.
Sei que não sou de todo a única a ouvir cada vez mais ao
longe os sindicatos e os partidos políticos. Falam uma linguagem que pouco ou
nada me diz, vivem lá no seu mundo, eu vivo no meu, o que até seria uma boa
maneira de vivermos todos se o que eles por aí falam e fazem não acabasse por
influenciar a minha própria realidade, quase sempre de forma que não me agrada.
Fico a questionar-me, por onde andarão as associações de consumidores? Será que
em algum momento tomarão consciência do poder e influência que podem vir a ter?
Poderá toda esta linha de pensamento ser fruto de uma desorientação individual, e nada disto faça sentido. Mas termino concordando com as palavras de Estrela Serrano, quando diz que há "matéria para repensar tudo o que tínhamos por adquirido".
quarta-feira, novembro 14, 2012
segunda-feira, outubro 22, 2012
Elisa, filha de ninguém #7/7
Com o tempo as filhas casaram e tiveram os
seus filhos, o Manuel abraçou e beijou muitos netos. Mas o seu envelhecimento
foi precoce, e um certo modo de olhar por cima do ombro tornou-se numa coisa
comum. Os seus olhos nunca mais perderam um brilho peculiar, o do terror de
quem espera o seu castigo a qualquer momento, que certamente será terrível,
inclemente, que se não vier dos homens virá de Deus, ou quem sabe de si próprio.
A nós só nos resta reflectir sobre qual dos três juízes é o pior, e qual deles
dará a sentença que mais faz sofrer os condenados.
Nesta cabeça que foi atravessada por tantos pensamentos numa só noite, apenas um prevaleceu e tomou conta de todo o seu espírito. Cristalizou-se dentro de si uma certeza, a de que o castigo chegaria, a qualquer momento, na figura de um polícia que o levaria preso. Tudo começou com o enterro da filha de ninguém mas continuou pelos anos fora, pobre Manuel, nesta história pelo menos o pior dos três juízes foi ele próprio, que se condenou para o resto da vida, sem apelo nem perdão. A justiça dos homens talvez tivesse sido mais branda, quanto à de Deus fica-se sempre nesta dúvida, basta lembrar que se nem para a Elisa filha de ninguém há garantias dela ter sido recebida no Paraíso, que dizer do homem que a enterrou por duas vezes.
Mais de vinte anos depois, um velho muito velho está sentado à soleira da porta para apanhar o sol do fim da tarde. Vencido pela demência, olha aterrorizado para um homem que abre o portão do quintal, seguido de uma mulher e duas crianças que vêm direitas a ele. Reconhece a filha mais nova e pergunta, tal como faz constantemente, que homem é aquele e se é o polícia que o vem buscar. Elisa passa-lhe a mão pela cabeça e pergunta, Meu pai, então não vês que é o meu marido, e vinha a polícia buscar-te porquê. Manuel olha-a bem de frente para responder, Tu bem sabes, tu bem sabes porquê. Elisa beija o pai e entra em casa, deixa o velho entregue a si próprio. Estes episódios tornaram-se banais e já ninguém lhes dá importância. Para quê recordar um tempo infeliz que não fez história? Todos fizeram por esquecer aquela simples forma de vida, que de tão pouco o tempo que existiu, foi como se já tivesse nascido morta. Acreditemos nisto e será assim na memória de todos, uma menina que nasceu morta.
Todos conseguiram fazê-lo menos este homem que aqui está. Sem testemunhas nem denunciantes, prisioneiro de si próprio, condenado à morte pela própria consciência, Manuel sabe bem que não foi assim que tudo se passou. Na sua mente não há trevas. Quanto a nós, que estamos do lado de fora, a luz do sol também nos deixa ver com clareza, há um bebé morto naquele quintal que está vivo, há um homem vivo naquele quintal que está morto.
Nesta cabeça que foi atravessada por tantos pensamentos numa só noite, apenas um prevaleceu e tomou conta de todo o seu espírito. Cristalizou-se dentro de si uma certeza, a de que o castigo chegaria, a qualquer momento, na figura de um polícia que o levaria preso. Tudo começou com o enterro da filha de ninguém mas continuou pelos anos fora, pobre Manuel, nesta história pelo menos o pior dos três juízes foi ele próprio, que se condenou para o resto da vida, sem apelo nem perdão. A justiça dos homens talvez tivesse sido mais branda, quanto à de Deus fica-se sempre nesta dúvida, basta lembrar que se nem para a Elisa filha de ninguém há garantias dela ter sido recebida no Paraíso, que dizer do homem que a enterrou por duas vezes.
*
Mais de vinte anos depois, um velho muito velho está sentado à soleira da porta para apanhar o sol do fim da tarde. Vencido pela demência, olha aterrorizado para um homem que abre o portão do quintal, seguido de uma mulher e duas crianças que vêm direitas a ele. Reconhece a filha mais nova e pergunta, tal como faz constantemente, que homem é aquele e se é o polícia que o vem buscar. Elisa passa-lhe a mão pela cabeça e pergunta, Meu pai, então não vês que é o meu marido, e vinha a polícia buscar-te porquê. Manuel olha-a bem de frente para responder, Tu bem sabes, tu bem sabes porquê. Elisa beija o pai e entra em casa, deixa o velho entregue a si próprio. Estes episódios tornaram-se banais e já ninguém lhes dá importância. Para quê recordar um tempo infeliz que não fez história? Todos fizeram por esquecer aquela simples forma de vida, que de tão pouco o tempo que existiu, foi como se já tivesse nascido morta. Acreditemos nisto e será assim na memória de todos, uma menina que nasceu morta.
Todos conseguiram fazê-lo menos este homem que aqui está. Sem testemunhas nem denunciantes, prisioneiro de si próprio, condenado à morte pela própria consciência, Manuel sabe bem que não foi assim que tudo se passou. Na sua mente não há trevas. Quanto a nós, que estamos do lado de fora, a luz do sol também nos deixa ver com clareza, há um bebé morto naquele quintal que está vivo, há um homem vivo naquele quintal que está morto.
Fim de publicação
segunda-feira, outubro 15, 2012
Elisa, filha de ninguém # 6/7
Nascida para logo morrer, enterrada para se
desenterrar a seguir, o corpo de Elisa demorou a alcançar o tão aclamado eterno
descanso. Voltou aos braços do avô que seguiu a passos rápidos, furtivo, de regresso
a casa. Olhando para todos os lados, a cada momento esperava encontrar alguém que
finalmente apontasse o dedo e trouxesse a luz a toda esta escuridão. Mas a
noite continuou tranquila e o povo permaneceu adormecido. As forças já iam
faltando a este homem. Foi enfim no fundo do quintal, a meia dúzia de metros da
porta de sua casa que se abriu o segundo e definitivo buraco. Ali não havia o
perigo de alguém se pôr a escavar. O medo de ser descoberto tomou novamente
conta de si e por várias vezes se sobressaltou, imaginando alguém a espreitar
por cima do muro, bons dias Manuel, que fazes tu, a abrires buracos na terra a
estas horas da madrugada. A sua cabeça continuou a funcionar por conta própria,
pensando nas coisas mais absurdas, como se exibisse filmes de outras realidades
para seu próprio entretenimento. Lembrou-se de quando era criança e jogava ao
berlinde com outras crianças como ele. Lembrou-se da primeira mulher que o teve
nos braços, não sabia nada, ela é que me ensinou tudo, por onde andará. O
buraco está aberto, desta vez ficou mais fundo. Ocorreu-lhe de repente que um
pouco mais para o lado ali enterrou também um cão do qual gostava muito, só que
dessa vez fora diferente, o cão morrera de velho. Pensou em pronunciar uma
prece para pedir perdão a Deus, se para a absolvição basta o arrependimento
este homem já ia arrependido quando cometeu o seu crime, agora é só pedir. Mas
o cansaço venceu-o e esqueceu-se logo a seguir de pronunciar a prece que lhe
poderia dar a salvação.
Finalmente, tudo acabou. Os primeiros raios de luz vieram a tempo apenas para testemunhar o arrumar da enxada, encostada junto à porta das traseiras, por onde agora vai entrar este velho, que não o era ontem mas que assim se tornou durante a noite. Se ficarmos nós cá fora neste tempo e neste lugar, poderemos ver os homens a passar na direcção das máquinas que já os esperam, passaram mesmo junto ao muro, espreitaram para dentro mas não foi por mal, isto de espreitar por cima dos muros é próprio do ser humano, espreitam mesmo que não haja nada para ver, como é agora o caso, apenas uma enxada encostada a uma parede.
Manuel fechou a porta atrás de si. Três mulheres o aguardavam, mas ninguém falou do que se passara, há muitas maneiras para fazer com que o passado deixe de existir, e esta é uma delas. O dono da casa pediu água para se lavar, a quem primeiro pertencia servi-lo assim fez, as outras duas voltaram a deitar-se, cada uma com os seus pensamentos. Fechado na cozinha, imerso na tina cheia de água bem quente, Manuel procurou então impor o silêncio aos seus pensamentos. Em vão. Três pancadas bem dadas na porta despertaram novamente todos os alarmes, levantou-se de um pulo, a água transbordou pelo chão, é a polícia, vêm-me buscar. Quis mexer-se dali mas as pernas não lhe obedeceram, sentiu a urina quente deslizar e misturar-se com a água. Alguém me viu e denunciou-me, vou preso, não mereço outra coisa. É a polícia, já me vêm buscar, perguntou quando sua mulher entrou na cozinha. O rosto da mulher fechou-se, Não digas disparates, é o Joaquim a saber porque te demoras tanto a sair para o campo, quis saber se estás doente e eu disse-lhe que sim, que hoje não podes ir.
No dia seguinte já pôde ir, assim como nos outros todos. As mulheres seguiram também em frente com as suas vidas, a Maria fez das tripas coração e lá foi trabalhar ao fim de três dias, mais tempo de ausência e já seria de estranhar. Portas adentro, nunca mais aquela casa foi a mesma. Não se falou mais no assunto, cada um remoeu consigo mesmo tudo o que se passou. Ninguém perguntou à mãe, como foste capaz, à irmã, como não acordaste antes, à avó, como não deste por isso, ao avô, o que fizeste aos pensamentos.
Finalmente, tudo acabou. Os primeiros raios de luz vieram a tempo apenas para testemunhar o arrumar da enxada, encostada junto à porta das traseiras, por onde agora vai entrar este velho, que não o era ontem mas que assim se tornou durante a noite. Se ficarmos nós cá fora neste tempo e neste lugar, poderemos ver os homens a passar na direcção das máquinas que já os esperam, passaram mesmo junto ao muro, espreitaram para dentro mas não foi por mal, isto de espreitar por cima dos muros é próprio do ser humano, espreitam mesmo que não haja nada para ver, como é agora o caso, apenas uma enxada encostada a uma parede.
Manuel fechou a porta atrás de si. Três mulheres o aguardavam, mas ninguém falou do que se passara, há muitas maneiras para fazer com que o passado deixe de existir, e esta é uma delas. O dono da casa pediu água para se lavar, a quem primeiro pertencia servi-lo assim fez, as outras duas voltaram a deitar-se, cada uma com os seus pensamentos. Fechado na cozinha, imerso na tina cheia de água bem quente, Manuel procurou então impor o silêncio aos seus pensamentos. Em vão. Três pancadas bem dadas na porta despertaram novamente todos os alarmes, levantou-se de um pulo, a água transbordou pelo chão, é a polícia, vêm-me buscar. Quis mexer-se dali mas as pernas não lhe obedeceram, sentiu a urina quente deslizar e misturar-se com a água. Alguém me viu e denunciou-me, vou preso, não mereço outra coisa. É a polícia, já me vêm buscar, perguntou quando sua mulher entrou na cozinha. O rosto da mulher fechou-se, Não digas disparates, é o Joaquim a saber porque te demoras tanto a sair para o campo, quis saber se estás doente e eu disse-lhe que sim, que hoje não podes ir.
No dia seguinte já pôde ir, assim como nos outros todos. As mulheres seguiram também em frente com as suas vidas, a Maria fez das tripas coração e lá foi trabalhar ao fim de três dias, mais tempo de ausência e já seria de estranhar. Portas adentro, nunca mais aquela casa foi a mesma. Não se falou mais no assunto, cada um remoeu consigo mesmo tudo o que se passou. Ninguém perguntou à mãe, como foste capaz, à irmã, como não acordaste antes, à avó, como não deste por isso, ao avô, o que fizeste aos pensamentos.
Próxima (e última) publicação: 22 de Outubro
quinta-feira, outubro 11, 2012
Alienação
Sonho com casas de madeira à beira de lagos.
Com cobertores partilhados, a proteger do frio da tarde
e risos porque são pequenos para nos tapar aos dois.
Sonho com o lugar da tua companhia.
Com as portadas fechadas a proteger-nos do mundo,
e a parar os relógios, as lógicas e as consciências.
Há uma curva no teu braço que é o meu refúgio.
Quando lá chego, tudo o resto é paisagem.
Com cobertores partilhados, a proteger do frio da tarde
e risos porque são pequenos para nos tapar aos dois.
Sonho com o lugar da tua companhia.
Com as portadas fechadas a proteger-nos do mundo,
e a parar os relógios, as lógicas e as consciências.
Há uma curva no teu braço que é o meu refúgio.
Quando lá chego, tudo o resto é paisagem.
terça-feira, outubro 09, 2012
Elisa, filha de ninguém #5/7
Os pensamentos, os sentimentos, a maior parte
dos que o assaltam são terríveis. Pensa em como estão agora fechadas para
sempre as portas do Paraíso, pensa que não há no mundo inteiro perdão para um
crime tão medonho, e as mãos tremem-lhe enquanto enrola o corpo num lençol, enquanto
pega na enxada que será a sua única companhia em tão triste empreitada, pobre
homem que assim exerce o seu papel de pai, a absolvição da filha leva-o à
própria condenação. A noite permanecia silenciosa e escura, porém já não por
muito mais tempo. Quando pôs o pé na rua todos os seus pensamentos se dirigiram
para o terreno que ficava atrás da casa, perto o suficiente para chegar lá em
dez minutos, longe o suficiente para afastar de vez este horror, este horror,
tomara já que acabe para que enfim possa sentar-me e chorar. Assim pensava
Manuel quando chegou ao sítio destinado, o suor escorrendo no rosto, se alguém
decide madrugar e passar por estas bandas, que vai ser de mim, denunciam-me à
polícia, amanhã já me estão a bater à porta, prendem-me para o resto da vida. O
tempo urge, já o dissemos, e não é esta a altura mais própria para grandes
considerações teóricas sobre o bem e o mal. Se a decisão está tomada há que
pô-la em prática, deixemos os remorsos para quando for o tempo deles.
Porém já vimos que não será assim. Ao mesmo tempo que trabalham as mãos, são muitas e nefastas as considerações que aquela cabeça vai congeminando sozinha. Dir-se-ia até que se dividiu em dois, para um lado aquele que toma as decisões práticas, vamos por ali, naquele lugar o terreno é macio, vai ser mais fácil abrir o buraco, já está o corpo lá dentro, agora é só tapar. Para o outro lado, como pode isto ser, que estou eu a fazer, deitei-me esta noite e tudo era igual a todos os dias, ainda o dia não rompeu e estou a enterrar uma neta, que vai ser de nós todos se isto se sabe, pobre criança que não tem culpa de nada, a esta não se negará o Senhor a receber nos seus braços, e daí nunca se sabe, nem baptizada foi, não tem nome, o Padre diz sempre que quem não for baptizado não entra no reino dos Céus, oxalá tenham pena desta, senão até essa culpa terei que carregar daqui para a frente, a de ficar uma recém-nascida abandonada às portas do Céu, ao Deus-dará, e que estranho tudo isto me parece, acho que estou a ficar louco.
Enterrada a Elisa, Manuel respirou fundo e tentou pôr em ordem os seus pensamentos, a dura tarefa estava concluída. E no entanto prevalecia um sinal de alarme, uma inquietação incipiente mas persistente, o que foi, está terminado, deixem-me em paz um momento, isto dizia Manuel aos seus pensamentos, que em verdade se diga, quando eles são muitos ao ponto de nos encherem a cabeça, o barulho pode ser de tal forma ensurdecedor que nem conseguimos pensar nada que preste. Sentado no chão fechou os olhos, respirou fundo. Vou para casa, foi o que pensou, mas quando abriu os olhos o alarme que antes apenas se insinuara disparou como se fossem trombetas nos seus ouvidos, já antes tinha olhado mas só agora via, as máquinas estavam a postos para arar o terreno, foram ontem postas a jeito pelos homens que hoje irão manobrá-las, este terreno é de cultivo, mal o sol nasça vão rasgar a terra, abrir os sulcos e lançar as sementes, desta terra irão nascer coisas vivas, mas antes que para isso haja tempo irão pôr a descoberto o corpo de uma recém-nascida que, enterrado às pressas há apenas umas horas não ficou a mais de três palmos, se ali ficar não faltará muito tempo para que, mesmo morto, aquele corpo diga a quem quiser ouvir, aqui estou.
Esta noite é de pesadelo e parece não ter fim. Se permanecer onde está, a pequena Elisa estará em breve à vista de todos. O sol já não demora muito a nascer e com ele virão os homens. Mais uma vez foram os pensamentos práticos que tomaram conta de tudo, que deram a ordem ao braço, pega na enxada outra vez, e o braço obedeceu, num frenesim o braço e a enxada recomeçaram o seu trabalho para desenterrar o que ainda agora foi enterrado, o suor misturado com as lágrimas, o estômago apertado numa náusea que logo toma conta do corpo todo, e a outra parte, perguntarão os mais curiosos, a parte dos inúmeros pensamentos que giram descontrolados, bom, se estão descontrolados e são inúmeros, já nem vale a pena tentar descortiná-los, a não ser talvez este enorme terror de ser apanhado. Coisa assombrosa o nosso corpo, os braços nunca fraquejaram. Elisa, minha neta, aqui não podes ficar, quis levar-te para mais longe mas afinal é para bem perto que terás que vir.
Porém já vimos que não será assim. Ao mesmo tempo que trabalham as mãos, são muitas e nefastas as considerações que aquela cabeça vai congeminando sozinha. Dir-se-ia até que se dividiu em dois, para um lado aquele que toma as decisões práticas, vamos por ali, naquele lugar o terreno é macio, vai ser mais fácil abrir o buraco, já está o corpo lá dentro, agora é só tapar. Para o outro lado, como pode isto ser, que estou eu a fazer, deitei-me esta noite e tudo era igual a todos os dias, ainda o dia não rompeu e estou a enterrar uma neta, que vai ser de nós todos se isto se sabe, pobre criança que não tem culpa de nada, a esta não se negará o Senhor a receber nos seus braços, e daí nunca se sabe, nem baptizada foi, não tem nome, o Padre diz sempre que quem não for baptizado não entra no reino dos Céus, oxalá tenham pena desta, senão até essa culpa terei que carregar daqui para a frente, a de ficar uma recém-nascida abandonada às portas do Céu, ao Deus-dará, e que estranho tudo isto me parece, acho que estou a ficar louco.
Enterrada a Elisa, Manuel respirou fundo e tentou pôr em ordem os seus pensamentos, a dura tarefa estava concluída. E no entanto prevalecia um sinal de alarme, uma inquietação incipiente mas persistente, o que foi, está terminado, deixem-me em paz um momento, isto dizia Manuel aos seus pensamentos, que em verdade se diga, quando eles são muitos ao ponto de nos encherem a cabeça, o barulho pode ser de tal forma ensurdecedor que nem conseguimos pensar nada que preste. Sentado no chão fechou os olhos, respirou fundo. Vou para casa, foi o que pensou, mas quando abriu os olhos o alarme que antes apenas se insinuara disparou como se fossem trombetas nos seus ouvidos, já antes tinha olhado mas só agora via, as máquinas estavam a postos para arar o terreno, foram ontem postas a jeito pelos homens que hoje irão manobrá-las, este terreno é de cultivo, mal o sol nasça vão rasgar a terra, abrir os sulcos e lançar as sementes, desta terra irão nascer coisas vivas, mas antes que para isso haja tempo irão pôr a descoberto o corpo de uma recém-nascida que, enterrado às pressas há apenas umas horas não ficou a mais de três palmos, se ali ficar não faltará muito tempo para que, mesmo morto, aquele corpo diga a quem quiser ouvir, aqui estou.
Esta noite é de pesadelo e parece não ter fim. Se permanecer onde está, a pequena Elisa estará em breve à vista de todos. O sol já não demora muito a nascer e com ele virão os homens. Mais uma vez foram os pensamentos práticos que tomaram conta de tudo, que deram a ordem ao braço, pega na enxada outra vez, e o braço obedeceu, num frenesim o braço e a enxada recomeçaram o seu trabalho para desenterrar o que ainda agora foi enterrado, o suor misturado com as lágrimas, o estômago apertado numa náusea que logo toma conta do corpo todo, e a outra parte, perguntarão os mais curiosos, a parte dos inúmeros pensamentos que giram descontrolados, bom, se estão descontrolados e são inúmeros, já nem vale a pena tentar descortiná-los, a não ser talvez este enorme terror de ser apanhado. Coisa assombrosa o nosso corpo, os braços nunca fraquejaram. Elisa, minha neta, aqui não podes ficar, quis levar-te para mais longe mas afinal é para bem perto que terás que vir.
Próxima publicação: 15 de Outubro
segunda-feira, outubro 01, 2012
Elisa, filha de ninguém #4/7
Não vale a pena pensar no que poderia ser, se
não o foi. Os factos impõem-se, a realidade oprime e angustia, o crime está
diante de todos. As mulheres afastaram-se todas da criança, que estranho
fenómeno este, é caso para perguntar de que se afastam elas, se do horror de
estar ali uma recém-nascida morta, se da culpa que cada uma cala dentro de si,
uma porque deixou morrer, outra porque sabia mas nada disse, outra porque nunca
chegou a saber. E como puderam afinal não saber, nada dizer, deixar morrer, são
perguntas que ficam até hoje sem resposta. O silêncio instalou-se nos espíritos
de todos, um imenso espaço vazio onde imperou o choque, primeiro, partilhado logo
a seguir com outros sentimentos, aí vem o remorso, já não era sem tempo, faça
favor de entrar, isto disse o choque ao remorso, bem-vindo a este silêncio
enorme, que de tão grande e profundo ainda tem espaço de sobra, então se não se
importa, isto disse o remorso, entra já também o desalento, com certeza, instalemo-nos
então todos, enquanto não chega o medo, esse quando chegar, já se sabe, toma
conta de tudo e temos nós que ir à procura de outros silêncios para preencher.
Quando chegou o medo as mulheres estavam entregues à tarefa de se ajudarem a lavar as próprias feridas, as do corpo e as outras. Afinal, se calhar por ser este silêncio tão grande, sempre sobrou algum espaço para a solidariedade, e se a primeira pedra for lançada que venha de fora, destas paredes para dentro já todos pecaram algum dia. Além disso, é justo dizê-lo, estão ali duas filhas a precisar do amor de uma mãe que já nasceu há muito tempo e que irá sê-lo, por opção, até morrer.
Já para o homem da casa tudo se passou de outra forma. Manuel permaneceu estático mais algum tempo, apenas olhando o corpo. Dir-se-ia que no silêncio que o cercava o choque prolongou a sua presença, demorando mais a sair. Mas foi o medo que acabou por invadi-lo por inteiro, choque, remorso e desalento lá sabiam do que estavam a falar. Ou então foi por culpa da solidariedade e da falta dela, que se deixou ficar a ocupar o silêncio das mulheres, com um homem ali mesmo ao pé entregue apenas a si mesmo, e ao medo, já sabemos.
Chegou-se à porta da rua para se assegurar que nada fora ouvido pelos vizinhos, e que a madrugada mantinha todos em volta mergulhados nas profundezas do sono. Enquanto voltava para junto do corpo ia pensando que se estivesse a filha de ninguém ainda viva, a sua reacção poderia ser a de um pai desonrado. Pedir contas à família do rapaz, casar a filha às pressas, gritar, desesperar. Ainda que apenas imaginados, pareceram-lhe estes momentos de humilhação e desonra como a maior das felicidades. Qualquer coisa seria melhor que esta outra realidade, esta forma silenciosa cuja presença possuía agora o poder de dominar tudo e todos, morta sim, mas por isso mesmo tornando irrelevante todo o tempo que passou até este momento, deitando para o lixo o homem que antes existiu, morto também ele afinal, e se assim é, compete-nos perguntar, que homem é este que agora aqui temos.
Os seus pensamentos sucederam-se a um ritmo frenético. Se num instante pensava numa coisa, logo a seguir surgiam outras ideias, outras recordações, sentimentos, atropelavam-se todos, muitas vozes soando ao mesmo tempo dentro de uma única cabeça. Será normal em face das circunstâncias, com certeza que sim, afinal qualquer um de nós poderá dizer que a si próprio também já lhe sucedeu, uns dirão que por conta de coisas más, outros felizmente, por coisas boas. Mas é também pertinente comentar, e não sem alguma preocupação de espectadores, que esta força de pensarmos e sentirmos muitas coisas ao mesmo tempo nem sempre nos faz bem, aliás, às vezes a violência do pensar e do sentir é tal, que até parece impossível como não cai o nosso corpo fulminado logo ali. Sabemos bem que alguns corpos não resistem e sucumbem, aos pensamentos, aos sentimentos.
Adiante. Como íamos dizendo, a cabeça deste homem é um turbilhão, só assim se explica que ao mesmo tempo que vê na filha uma mulher pérfida capaz de deixar morrer uma criatura inocente, já de repente a olha e não é isso que vê. Agora que voltou a olhá-la vê apenas a sua filha, o gesto criminoso tornou-se numa névoa desfocada, minha querida filha, uma rapariguita sem siso nenhum, o desalento e um vazio sem explicação estampados nos olhos, enquanto a mãe procura, através da água, limpar-lhe do espírito a memória do que aconteceu. Esta Maria não soube, não pôde, não quis ser mãe para a sua cria. Mas para este homem e esta mulher essa questão não se coloca, as crias deles estão ali mesmo à sua frente e reclamam por cuidados. Os homens de fora daquelas paredes poderão condenar a criminosa, o homem que está paredes adentro não o pode fazer. Há já muitos anos que é pai, não pode agora dizer, desisto, meteste-te nela agora aguenta-te sozinha. A sua obrigação manda proteger, se o preço a pagar é ser cúmplice de pecado mortal, que assim seja. Com este último pensamento tomou consciência do papel que lhe cabia agora cumprir. Era o homem da casa. Alguém tinha que abrir a cova, sepultar. Alguém tinha que evitar que o crime chegasse a ser conhecido. No mesmo local onde caiu, um corpo já frio aguardava, paciente, que alguém o tomasse nos braços, mais cedo ou mais tarde alguém teria que o fazer. Para preservar o segredo, proteger a família da condenação da justiça, a Elisa, filha de ninguém, teve que ser enterrada.
Quando chegou o medo as mulheres estavam entregues à tarefa de se ajudarem a lavar as próprias feridas, as do corpo e as outras. Afinal, se calhar por ser este silêncio tão grande, sempre sobrou algum espaço para a solidariedade, e se a primeira pedra for lançada que venha de fora, destas paredes para dentro já todos pecaram algum dia. Além disso, é justo dizê-lo, estão ali duas filhas a precisar do amor de uma mãe que já nasceu há muito tempo e que irá sê-lo, por opção, até morrer.
Já para o homem da casa tudo se passou de outra forma. Manuel permaneceu estático mais algum tempo, apenas olhando o corpo. Dir-se-ia que no silêncio que o cercava o choque prolongou a sua presença, demorando mais a sair. Mas foi o medo que acabou por invadi-lo por inteiro, choque, remorso e desalento lá sabiam do que estavam a falar. Ou então foi por culpa da solidariedade e da falta dela, que se deixou ficar a ocupar o silêncio das mulheres, com um homem ali mesmo ao pé entregue apenas a si mesmo, e ao medo, já sabemos.
Chegou-se à porta da rua para se assegurar que nada fora ouvido pelos vizinhos, e que a madrugada mantinha todos em volta mergulhados nas profundezas do sono. Enquanto voltava para junto do corpo ia pensando que se estivesse a filha de ninguém ainda viva, a sua reacção poderia ser a de um pai desonrado. Pedir contas à família do rapaz, casar a filha às pressas, gritar, desesperar. Ainda que apenas imaginados, pareceram-lhe estes momentos de humilhação e desonra como a maior das felicidades. Qualquer coisa seria melhor que esta outra realidade, esta forma silenciosa cuja presença possuía agora o poder de dominar tudo e todos, morta sim, mas por isso mesmo tornando irrelevante todo o tempo que passou até este momento, deitando para o lixo o homem que antes existiu, morto também ele afinal, e se assim é, compete-nos perguntar, que homem é este que agora aqui temos.
Os seus pensamentos sucederam-se a um ritmo frenético. Se num instante pensava numa coisa, logo a seguir surgiam outras ideias, outras recordações, sentimentos, atropelavam-se todos, muitas vozes soando ao mesmo tempo dentro de uma única cabeça. Será normal em face das circunstâncias, com certeza que sim, afinal qualquer um de nós poderá dizer que a si próprio também já lhe sucedeu, uns dirão que por conta de coisas más, outros felizmente, por coisas boas. Mas é também pertinente comentar, e não sem alguma preocupação de espectadores, que esta força de pensarmos e sentirmos muitas coisas ao mesmo tempo nem sempre nos faz bem, aliás, às vezes a violência do pensar e do sentir é tal, que até parece impossível como não cai o nosso corpo fulminado logo ali. Sabemos bem que alguns corpos não resistem e sucumbem, aos pensamentos, aos sentimentos.
Adiante. Como íamos dizendo, a cabeça deste homem é um turbilhão, só assim se explica que ao mesmo tempo que vê na filha uma mulher pérfida capaz de deixar morrer uma criatura inocente, já de repente a olha e não é isso que vê. Agora que voltou a olhá-la vê apenas a sua filha, o gesto criminoso tornou-se numa névoa desfocada, minha querida filha, uma rapariguita sem siso nenhum, o desalento e um vazio sem explicação estampados nos olhos, enquanto a mãe procura, através da água, limpar-lhe do espírito a memória do que aconteceu. Esta Maria não soube, não pôde, não quis ser mãe para a sua cria. Mas para este homem e esta mulher essa questão não se coloca, as crias deles estão ali mesmo à sua frente e reclamam por cuidados. Os homens de fora daquelas paredes poderão condenar a criminosa, o homem que está paredes adentro não o pode fazer. Há já muitos anos que é pai, não pode agora dizer, desisto, meteste-te nela agora aguenta-te sozinha. A sua obrigação manda proteger, se o preço a pagar é ser cúmplice de pecado mortal, que assim seja. Com este último pensamento tomou consciência do papel que lhe cabia agora cumprir. Era o homem da casa. Alguém tinha que abrir a cova, sepultar. Alguém tinha que evitar que o crime chegasse a ser conhecido. No mesmo local onde caiu, um corpo já frio aguardava, paciente, que alguém o tomasse nos braços, mais cedo ou mais tarde alguém teria que o fazer. Para preservar o segredo, proteger a família da condenação da justiça, a Elisa, filha de ninguém, teve que ser enterrada.
Próxima publicação: 8 de Outubro
segunda-feira, setembro 24, 2012
Elisa, filha de ninguém #3/7
De quem és tu filha. A menina nasceu em noite
de lua nova, escura como breu. Foram tantas as trevas em volta que é justo
dizer-se que nessa noite não se deu à luz. Não se ouviram os gritos
desesperados do parto, não houve correria do quarto para a cozinha, ninguém
ouviu, ou o que é pior, ninguém quis ouvir. Maria pariu sozinha e em silêncio, de
cócoras sobre uma selha, conforme tinha visto fazer a outra a quem tinha sido
preciso ir ajudar. Às escuras, a bebé saiu do ventre materno e mergulhou no
fundo da selha para onde já tinham vertido as águas e o sangue que durante
meses a mantiveram viva e de boa saúde. Ninguém a amparou. Elisa ainda
despertou a tempo de ouvir os sons que a alertavam para que algo estava mal, mas
tarde demais os compreendeu, a criança afogou-se, disse a Maria para logo se
calar. Nasceu e morreu sem nome, sem pai, mãe, parentes. Nesta história, de
quem és tu filha é pergunta que eternamente ficará sem resposta.
Os donos da casa despertaram enfim, não
apenas do sono dormido, mas também daquele que os mantinha longe da realidade. Maria
e Elisa eram filhas de um homem chamado Manuel. Um homem do campo, ignorante e
sem maneiras, um bom filho de Deus, mas nem por isso menos consciente dos seus
deveres de pai. Para que se veja como às vezes se julgam erradamente as
pessoas, afinal foi a este homem sem instrução que se ouviram os primeiros
gritos de revolta perante o sucedido. Gritou com a filha que em silêncio parira
e em silêncio se mantinha, apenas olhando a selha onde permanecia o objecto da
sua culpa. De longe em longe lá conseguia distinguir os gritos do pai a
perguntar coisas, que de tão óbvias, nem tinham resposta possível. Porque tinha
ela feito semelhante coisa. Para quê esconder a gravidez, e pior, deixar morrer
assim uma criança. Que espécie de mulher era ela, que isto nem fora coisa de
gente, como pudera deixar cair a criança, nem os bichos renegam um gesto tão
simples, este de amparar a cria, que coisa horrível, e agora. Os gritos duraram
o seu tempo e depois cessaram, é assim com todas as coisas do mundo, sejam elas
uma gravidez, uma vida, uma dúvida, uma certeza, duram o que têm que durar,
depois cessam e tornam-se noutra coisa qualquer.
Reposto o silêncio, foi a vez da Maria o
quebrar, afinal alguma explicação tinha que surgir, e não apenas para os
outros, para si própria também. Maria falou de vergonha. De falta de coragem.
Do dinheiro que a família não tinha, e que tornavam impossível o casamento que
as boas regras impunham. Que alternativas existiam? Nenhumas. Não casar seria a
pior condenação de todas, mãe solteira, como poderia ela sair à rua, como
entraria na igreja, como enfrentaria os olhares inquisidores dos outros,
espreitando ao postigo sempre com uma pergunta a reclamar uma resposta, de quem
és tu filha, de quem és tu mãe, de quem és tu namorada, de que espécie és tu,
aqui detrás do nosso postigo que nos protege de todo o mal vamos encaixar-te
numa categoria qualquer, não teres nenhuma é que não pode ser, e então cá vai,
boa filha, mulher honrada, mãe solteira, mulher da vida, prostituta, a escolha
está feita, que Deus te perdoe e te afaste de nós.
É verdade, estas explicações não convencem
ninguém até hoje, mas talvez seja porque Maria acabou por falar mais para os
outros do que para si. Não consta que tenha dito, e se calhar nunca o pensou,
não quero ser mãe ainda, cada coisa a seu tempo e este não é ainda o meu tempo.
Maria deixou por dizer coisas chocantes como estas que se seguem, esta que aqui
jaz não é minha filha porque por muito tempo nem sabia que a tinha e depois de
saber nunca a desejei. Nunca foi minha porque se soubesse como tirá-la do meu
corpo tinha-a tirado há já muito tempo. Não é minha filha porque quando as mães
não o querem ser, aos filhos só lhes resta serem filhos de ninguém. Por aqui se
vêem os mistérios da vida. Um dia, muito para além do tempo em que decorre esta
história, um escritor dirá que onde nasce um filho nasce também uma mãe. Belas
e verdadeiras palavras serão. Menos belas, porém também verdadeiras, são estas
que resultam do que a Maria gostava de ter dito e não disse, que a mãe afinal só
nasce se for ela própria a desejá-lo. Já os filhos para nascerem, até onde
chega a sabedoria dos homens, nunca se ouviu dizer que a sua vontade conte para
alguma coisa.
Tudo isto são conjecturas, invenções, falsidades.
Regressemos aos factos, agora que terminaram as explicações e impera de novo o
silêncio. Aos pés de todos, o cadáver de uma recém-nascida sem nome. Mas já que
nos demos ao luxo de pôr explicações na boca da mãe, tenhamos também a ousadia
de baptizar a recém-nascida. Seja então Elisa o nome dela, por parte de uma tia
que se tivesse acordado mais cedo tudo teria sido diferente. Quem sabe, por
esta altura, talvez a noite e os corações não estivessem tão escurecidos, e a
criança não estivesse sendo tristemente apelidada de Elisa, filha de ninguém.
Próxima publicação: 01 de Outubro
segunda-feira, setembro 17, 2012
Elisa, filha de ninguém #2/7
De quem és tu
filha? Eis a pergunta que se impõe e nos coloca de novo frente ao portão que dá
acesso ao quintal, uma pergunta que nos devolve à história que já tarda em ser
contada, e que afinal, se calhar, é acerca de coisas que mudam e de coisas que
ficam sempre na mesma.
Recordemos então as duas irmãs que em tempos a habitaram, e que por ser bem sabido de todos de quem eram elas filhas, nunca foi preciso perguntar. A Maria e a Elisa, no seu tempo de solteiras, dormiam juntas em colchão de palha, num tempo que, pela via das maravilhas da ciência e da técnica, não está a cem, mas antes a mil anos de distância desta realidade que foi a dos nossos avós e bisavós. Igual em todos os tempos será talvez a preocupação de um pai com as suas filhas, a sua vontade de educá-las o melhor possível, corrigi-las quando assim tiver que ser, protegê-las de tudo, do mundo inteiro e até mesmo, quem sabe, delas mesmas. Iguais serão também as crianças e os jovens desde sempre, a sua curiosidade pelo desconhecido, a sofreguidão pela vida, o seu modo ansioso e intempestivo de descobrir o mundo, de descobrir-se no mundo, de amar e ser amado. E se nesta sofreguidão por vezes acontecem erros, enganos, maus actos, também isto é coisa que sempre foi assim e sempre assim será, quem nunca pecou, etecetera, sobre esta história já todos sabemos o que nos quiseram contar.
Neste modo de viver igual ao dos seus semelhantes, a Maria é também uma jovem comum, com pai e mãe, namora com o seu consentimento, e só aguarda que a família viva tempos mais abonados para que se possa casar, na lei dos homens e na lei de Deus, com o homem que escolheu. Aguardar sim, mas não para tudo e não para sempre, a verdade é que esta espera, de tão longa, foi insuportável para os dois jovens que tinham demasiada coisa para descobrir um no outro. Não esperaram, e aqui nos deparamos com outra banalidade igual desde que o mundo é mundo, mesmo no tempo em que era suposto e recomendado que se esperasse, a verdade é que poucos esperavam.
Durante meses, a gravidez da Maria foi coisa desconhecida de todos, menos dela própria e da sua irmã, Elisa. Encostada a ela toda a noite, sentia no próprio corpo a agitação do ventre alheio, e testemunhava em silêncio a existência daquela vida. A luz do dia dava-lhe coragem para a pergunta que se impunha, Estás prenha, e a resposta era sempre a mesma, Não estou, não estou, não estou.
Recordemos então as duas irmãs que em tempos a habitaram, e que por ser bem sabido de todos de quem eram elas filhas, nunca foi preciso perguntar. A Maria e a Elisa, no seu tempo de solteiras, dormiam juntas em colchão de palha, num tempo que, pela via das maravilhas da ciência e da técnica, não está a cem, mas antes a mil anos de distância desta realidade que foi a dos nossos avós e bisavós. Igual em todos os tempos será talvez a preocupação de um pai com as suas filhas, a sua vontade de educá-las o melhor possível, corrigi-las quando assim tiver que ser, protegê-las de tudo, do mundo inteiro e até mesmo, quem sabe, delas mesmas. Iguais serão também as crianças e os jovens desde sempre, a sua curiosidade pelo desconhecido, a sofreguidão pela vida, o seu modo ansioso e intempestivo de descobrir o mundo, de descobrir-se no mundo, de amar e ser amado. E se nesta sofreguidão por vezes acontecem erros, enganos, maus actos, também isto é coisa que sempre foi assim e sempre assim será, quem nunca pecou, etecetera, sobre esta história já todos sabemos o que nos quiseram contar.
Neste modo de viver igual ao dos seus semelhantes, a Maria é também uma jovem comum, com pai e mãe, namora com o seu consentimento, e só aguarda que a família viva tempos mais abonados para que se possa casar, na lei dos homens e na lei de Deus, com o homem que escolheu. Aguardar sim, mas não para tudo e não para sempre, a verdade é que esta espera, de tão longa, foi insuportável para os dois jovens que tinham demasiada coisa para descobrir um no outro. Não esperaram, e aqui nos deparamos com outra banalidade igual desde que o mundo é mundo, mesmo no tempo em que era suposto e recomendado que se esperasse, a verdade é que poucos esperavam.
Durante meses, a gravidez da Maria foi coisa desconhecida de todos, menos dela própria e da sua irmã, Elisa. Encostada a ela toda a noite, sentia no próprio corpo a agitação do ventre alheio, e testemunhava em silêncio a existência daquela vida. A luz do dia dava-lhe coragem para a pergunta que se impunha, Estás prenha, e a resposta era sempre a mesma, Não estou, não estou, não estou.
Próxima publicação: 24 de Setembro
segunda-feira, setembro 10, 2012
Elisa, filha de ninguém #1/7
O crime nunca
foi denunciado. Não houve investigação policial. Se alguém houve que tenha
desconfiado, visto ou ouvido dizer, nunca falou, calou-se para sempre. Esta
história ficou retida no silêncio de todos quantos nela se envolveram, apenas sussurrada
de algumas mães para algumas filhas, na urgência de contar o segredo da menina
que da vida apenas soube o que foi nascer e morrer. Talvez porque chegou cedo
demais, não teve direito a pertencer à família que mais tarde, aos que chegaram
no tempo certo, soube criar e acarinhar. Foi há muitos anos atrás e os que
viveram os acontecimentos já morreram todos.
A casa ainda lá
está, recuperada por filhos, primeiro, depois por netos. É o melhor dos lugares
para o descanso de fim-de-semana, e para isso mesmo lhes serve. A paisagem em
volta é magnífica e o clima, apesar de sempre agressivo, seja Verão ou Inverno,
traz aos corpos o vigor e a saúde próprios de tudo o que permanece em estado puro.
São muito poucos os que sabem do que por lá se passou, e mesmo dos que chegaram
a saber, já ninguém está para se lembrar disso. Esta casa de hoje em dia tem
água e luz, máquinas para lavar, secar e cozinhar, chão de madeira e pedra, tapetes,
camas e sofás. O quintal em torno dela está coberto por uma fresca manta verde
onde se espojam primos e primas, brincadeiras alegres das crianças que são já o
fruto da sexta geração desta família.
É uma aldeia igual
às outras todas. Uma terra que se vestiu com ares de modernidade, aderiu ao
conforto e nalguns casos mesmo ao luxo, em tudo diferente da época a que remonta
a ocorrência, registe-se, primeira década do século vinte, aos anos que isto
foi. Grandes diferenças se encontram realmente, saltam à vista, porém aos que
têm um olhar mais profundo, seja por hábito ou porque a sua natureza não lhes
permite olhar de outra forma, não deixarão de notar o que permanece sempre
igual, e não apenas nos lugares, mas sobretudo nas pessoas, que é quem faz os
lugares serem o que são.
Observemos. Nesta rua principal, que é mais ou menos a única, vemos
passar o tractor, o burro, a carroça, em sã convivência com os carros e motas
de alta cilindrada, estes últimos exibindo-se aos Sábados e Domingos, eclipsando-se
inevitavelmente durante a semana. Contra-argumentemos então, tudo o que foi
antes dito não faz sentido, está de facto diferente a aldeia, pertence sem
dúvida ao século vinte e um. Porém agita-se o vento ao final da tarde e entra
pelas narinas o cheiro dos porcos e das uvas fermentadas. Respiremos fundo para
que se nos encha o peito com o cheiro do lume, aceso assim que o sol se põe. É
que as noites, por estes lados, até em pleno Verão podem ser de gelar os ossos. Olhemos
no fundo dos olhos dos velhos e das velhas vestidos de negro, que se quedam à
porta de casa ou das adegas, de mão na vista protegendo do sol para melhor
verem quem passa, e inquietos, vejamos enfim um modo de olhar que é o mesmo
desde o início dos tempos, sintamos a modernidade à nossa volta a perder o seu
brilho e vigor, afinal não passas de pó e ao pó tornarás. De quem és tu
filha?, perguntam sem cerimónias. Quem se ofende com a pergunta é porque não é
deste mundo.
Próxima publicação: 17 de Setembro
segunda-feira, julho 09, 2012
Estrudes Luísa
As vinhas dão
trabalho o ano inteiro. É preciso podar, depois empar, curar, vindimar. Lavar
os cestos. Pisar as uvas. Fazer o vinho. Lançam-se as sementes à terra e brotam
as batatas, o trigo, as favas. Quem olhar com atenção vê que o trabalho também
brota da terra, não é coisa que se coma ou beba, mas pensando bem, sem trabalho
não há o que comer, e isto é verdade em todos os tempos do mundo. Quem não tem
terras precisa de trabalhar, quem as tem precisa de quem as trabalhe. Mas em
Agosto não há trabalho, só há calor.
Já é fim de tarde mas o calor continua opressivo, doentio, o ar irrespirável. A estrada é comprida e é só uma, atravessa a aldeia de ponta a ponta, a casa é das primeiras e já se vê ao longe, mas lá em cima. Demasiado lá em cima para o calor que está. A Estrudes regressa a casa pela rua deserta, portas e janelas fechadas. Todos os que a isso se podem permitir esperam que o estio dê uma trégua para então saírem.
Quanto a ela, não tem esse privilégio. A sua condição de viúva vestiu-a de negro desde os trinta, já lá vão três anos. É a conta que Deus fez. Talvez por isso seja também em número de três os filhos que lhe ficaram, mais a mãe, todos por esta hora à espera dela. O mais velho só tem seis anos. Há também a menina e o filho mais novo, tão pequeno ainda, tão pequenos todos.
O marido morreu a trabalhar, atropelado pelo carro de bois que comandava. Donde se conclui que o trabalho não dá só do que comer, também dá do que morrer. Neste início de século vinte, num sítio em Portugal que mais tarde alguns letrados poderão chamar de profundo, a Estrudes recebeu de indemnização, pela morte do marido, o facto de poder contar apenas consigo própria para sobreviver e cumprir a sua obrigação de criar três filhos e sustentar a mãe.
É claro que ninguém se chama Estrudes, o nome certo é Gertrudes. É o modo de falar das gentes que lhe abrevia a pronúncia. E por misteriosa decisão da progenitora, a Gertrudes tem outro nome, é Gertrudes Luísa. Não deixa de ser coisa estranha dois nomes assim reunidos. Se o primeiro se percebe no meio rural que reconhecemos pela paisagem em volta, de onde teria vindo a Luísa, nome de gente distinta, a destoar em tudo nesta mulher? Luísa pressupõe certa fineza nas mãos, no rosto e nos modos. Não é nome para camponesa. Apetece ir bater ao postigo daquela casinha, tão pequena, como pode viver lá tanta gente, diga lá minha senhora, como é que se lembrou de juntar a Luísa à Estrudes? Provavelmente a resposta seria igual à de tantas mães pelo mundo fora, porque sim, porque gostei, porque olhei para ela e foi o nome que Deus me segredou. Se quisermos especular, fantasiar, podemos inventar uma resposta mais poética: Estrudes Luísa porque se o destino de Estrudes já ela o tinha por garantido, ao menos que no nome houvesse a esperança de um dia ela poder ter outro, um destino de Luísa, quem sabe. E simplificando, reconheçamos apenas que soa bem.
Satisfeita a curiosidade onomástica, voltemos para o calor da rua. Mais forte que ele parece ser a Estrudes, que caminha a passo seguro, direita a casa. Já não é tempo de moças que vão formosas e não seguras. Com uma vida tão dura, trinta e poucos anos já chegaram para que se perdesse a mocidade e a formosura da Estrudes Luísa. Os passos são porém seguros. Quando se fica viúva e com três filhos para criar perde-se o direito à fragilidade. Qualquer Luísa teria que deixar de o ser, esta não foi excepção. Ficou somente a Estrudes para trabalhar no campo, na casa, no que houver, porque o trabalho é que não pode faltar. A Estrudes não chora a morte do marido porque isso não dá de comer a ninguém, não se lamenta por estar condenada à solidão ainda tão jovem, estas questões não são deste tempo. A Estrudes não fraqueja nem permite que o desespero tome conta dela. Não se engana nas contas embora não saiba ler nem escrever, paga sempre tudo o que deve. A Estrudes já anda meia curvada, pela dureza do trabalho e pela dor de tudo o que lhe aconteceu. O seu semblante endureceu, a falta de afecto vai acabar por secá-la por dentro, mas isso não é culpa de ninguém, nem sequer dela própria, e o seu passo é seguro, porque não pode ser outro.
Algumas vezes à noite, quando todos dormem espalhados pelas três divisões da casa, a Luísa que há na Estrudes sente saudades e dá-se ao luxo de chorar, perguntando-se por que razão tem o seu caminho que ser tão difícil. Nesses momentos suspira por uma vida mais fácil e deseja, com todas as suas forças, que ao menos uma única vez, em alguma pequena coisa, a vida se limitasse a exalar o perfume da rosa e deixasse os espinhos para outros que não ela.
Neste Agosto em que não há trabalho o desespero está cada vez mais difícil de controlar. Dia após dia temo-la visto sair de manhã, ainda com a ilusão do ar fresco que depressa se desvanece, indo a cada dia um pouco mais longe, à procura do sustento que não surgiu em lado nenhum. Já perdeu a conta aos dias em que regressou a casa, tal como a estamos a ver agora, todas as expectativas frustradas. E o desespero, na maior parte do tempo tão bem domado no fundo de si própria, a cada regresso tem vindo a ganhar novas forças, tornando-se lentamente numa besta abominável, apenas à espera que a última amarra se solte para irromper e tomar conta de tudo.
Uma proposta de casamento surgiu recentemente e aguarda resposta. Também viúvo, também com dois filhos pequenos, quem é mãe de três pode ser mãe de cinco, este homem é dos que têm terras para dar trabalho aos outros. Curiosamente, agora que as suas preces foram finalmente atendidas e o caminho mais fácil se perfila à sua frente, a resposta da Estrudes tem tardado a ser dada. Não estás cansada de enfrentar o mundo inteiro sozinha, três anos já não te chegam? Por quanto tempo vais tu conseguir criá-los assim, não seria melhor se? Estas palavras são da sua mãe, são de si própria nas noites que já conhecemos, e a resposta parece óbvia. Mas estranhamente, o desespero parece encontrar na figura deste homem novos meios para se agigantar ainda mais dentro dela. Nos últimos tempos, e a cada regresso a casa sem trabalho, a possibilidade do casamento foi ganhando diferentes contornos. A cada dia que passa, parece ser a única forma possível de continuar a dar alimento aos filhos. Mais do que o caminho para uma nova vida, esta proposta é uma questão de sobrevivência.
Este caminho será certamente o mais fácil, mas onde está, que é feito do perfume da rosa, por que motivo não se faz ele sentir? Em tudo isto pensa a Estrudes de noite. No dia seguinte, cada vez mais cedo porque é preciso ir cada vez mais longe, nova tentativa para encontrar trabalho, que o desespero ainda não reina, embora falte pouco.
Foi com todo este peso que saiu de casa hoje de manhã. Nunca a Estrudes fez tanto jus ao seu nome. Curvada perante o inevitável, há vários dias que já entendeu como é inútil esta busca pelo trabalho que não há. Mesmo assim voltou a sair, levou o seu desespero a passear, quanto à esperança, já há mais de uma semana que desistiu de a acompanhar. Cada vez mais próxima de uma decisão que dará alimento aos seus filhos, como que por castigo a lembrança do marido morto tem-se tornado cada vez mais forte e acompanha-a sempre no seu caminho. Calcorreou os lugares, bateu a todas as portas. Já nem se sentia reagir quando a resposta vinha, sempre a mesma, sempre igual. E tal era o seu estado de resignação que nem se deu conta, ao princípio, quando por uma única vez a resposta não foi a mesma de sempre. Hoje, no dia em que a vemos, a Estrudes arranjou trabalho.
Quem a vir agora a subir a estrada, direita a casa, vê uma mulher precocemente velha dobrada pelo peso da trouxa de roupa que trouxe para lavar. Mas quem como nós teve o privilégio de a poder acompanhar, sabe bem que a Estrudes trouxe um fardo de roupa pesado mas deixou ficar para trás outros tantos fardos que lhe pesavam muito mais.
O trabalho que, de forma indiferente, aquela outra mulher lhe pôs nos braços, devolveu à Estrudes o nome que lhe andava a faltar. Esta Estrudes que aqui vai hoje leva a cabeça erguida e mais firmeza no andar, está inteira, é a Estrudes Luísa. Não é Luísa por ser fina ou rica, isso nunca poderá vir a ser. É Luísa porque é dona de si própria, leva consigo a dignidade de quem se sustenta a trabalhar. Esta Estrudes Luísa desprezou o caminho mais fácil. Encarou o mais difícil e teve a coragem de perceber que só este lhe convinha. Que só por aquele caminho poderia continuar a trazer os seus dois nomes consigo. E que lhe assentam na perfeição, façamos a justa vénia a quem a baptizou.
Ali vai ela direita a casa, com o trabalho que foi possível encontrar hoje, melhores dias virão, piores dias virão. Hoje e até que morra, não haverá outra forma de levar a vida. A sua decisão só pode ser uma, e por incrível que pareça no meio de tanto calor, parece levantar-se uma brisa com um ligeiro perfume de rosas.
O pedido de casamento foi recusado naquele mesmo dia, para todo o sempre.
Já é fim de tarde mas o calor continua opressivo, doentio, o ar irrespirável. A estrada é comprida e é só uma, atravessa a aldeia de ponta a ponta, a casa é das primeiras e já se vê ao longe, mas lá em cima. Demasiado lá em cima para o calor que está. A Estrudes regressa a casa pela rua deserta, portas e janelas fechadas. Todos os que a isso se podem permitir esperam que o estio dê uma trégua para então saírem.
Quanto a ela, não tem esse privilégio. A sua condição de viúva vestiu-a de negro desde os trinta, já lá vão três anos. É a conta que Deus fez. Talvez por isso seja também em número de três os filhos que lhe ficaram, mais a mãe, todos por esta hora à espera dela. O mais velho só tem seis anos. Há também a menina e o filho mais novo, tão pequeno ainda, tão pequenos todos.
O marido morreu a trabalhar, atropelado pelo carro de bois que comandava. Donde se conclui que o trabalho não dá só do que comer, também dá do que morrer. Neste início de século vinte, num sítio em Portugal que mais tarde alguns letrados poderão chamar de profundo, a Estrudes recebeu de indemnização, pela morte do marido, o facto de poder contar apenas consigo própria para sobreviver e cumprir a sua obrigação de criar três filhos e sustentar a mãe.
É claro que ninguém se chama Estrudes, o nome certo é Gertrudes. É o modo de falar das gentes que lhe abrevia a pronúncia. E por misteriosa decisão da progenitora, a Gertrudes tem outro nome, é Gertrudes Luísa. Não deixa de ser coisa estranha dois nomes assim reunidos. Se o primeiro se percebe no meio rural que reconhecemos pela paisagem em volta, de onde teria vindo a Luísa, nome de gente distinta, a destoar em tudo nesta mulher? Luísa pressupõe certa fineza nas mãos, no rosto e nos modos. Não é nome para camponesa. Apetece ir bater ao postigo daquela casinha, tão pequena, como pode viver lá tanta gente, diga lá minha senhora, como é que se lembrou de juntar a Luísa à Estrudes? Provavelmente a resposta seria igual à de tantas mães pelo mundo fora, porque sim, porque gostei, porque olhei para ela e foi o nome que Deus me segredou. Se quisermos especular, fantasiar, podemos inventar uma resposta mais poética: Estrudes Luísa porque se o destino de Estrudes já ela o tinha por garantido, ao menos que no nome houvesse a esperança de um dia ela poder ter outro, um destino de Luísa, quem sabe. E simplificando, reconheçamos apenas que soa bem.
Satisfeita a curiosidade onomástica, voltemos para o calor da rua. Mais forte que ele parece ser a Estrudes, que caminha a passo seguro, direita a casa. Já não é tempo de moças que vão formosas e não seguras. Com uma vida tão dura, trinta e poucos anos já chegaram para que se perdesse a mocidade e a formosura da Estrudes Luísa. Os passos são porém seguros. Quando se fica viúva e com três filhos para criar perde-se o direito à fragilidade. Qualquer Luísa teria que deixar de o ser, esta não foi excepção. Ficou somente a Estrudes para trabalhar no campo, na casa, no que houver, porque o trabalho é que não pode faltar. A Estrudes não chora a morte do marido porque isso não dá de comer a ninguém, não se lamenta por estar condenada à solidão ainda tão jovem, estas questões não são deste tempo. A Estrudes não fraqueja nem permite que o desespero tome conta dela. Não se engana nas contas embora não saiba ler nem escrever, paga sempre tudo o que deve. A Estrudes já anda meia curvada, pela dureza do trabalho e pela dor de tudo o que lhe aconteceu. O seu semblante endureceu, a falta de afecto vai acabar por secá-la por dentro, mas isso não é culpa de ninguém, nem sequer dela própria, e o seu passo é seguro, porque não pode ser outro.
Algumas vezes à noite, quando todos dormem espalhados pelas três divisões da casa, a Luísa que há na Estrudes sente saudades e dá-se ao luxo de chorar, perguntando-se por que razão tem o seu caminho que ser tão difícil. Nesses momentos suspira por uma vida mais fácil e deseja, com todas as suas forças, que ao menos uma única vez, em alguma pequena coisa, a vida se limitasse a exalar o perfume da rosa e deixasse os espinhos para outros que não ela.
Neste Agosto em que não há trabalho o desespero está cada vez mais difícil de controlar. Dia após dia temo-la visto sair de manhã, ainda com a ilusão do ar fresco que depressa se desvanece, indo a cada dia um pouco mais longe, à procura do sustento que não surgiu em lado nenhum. Já perdeu a conta aos dias em que regressou a casa, tal como a estamos a ver agora, todas as expectativas frustradas. E o desespero, na maior parte do tempo tão bem domado no fundo de si própria, a cada regresso tem vindo a ganhar novas forças, tornando-se lentamente numa besta abominável, apenas à espera que a última amarra se solte para irromper e tomar conta de tudo.
Uma proposta de casamento surgiu recentemente e aguarda resposta. Também viúvo, também com dois filhos pequenos, quem é mãe de três pode ser mãe de cinco, este homem é dos que têm terras para dar trabalho aos outros. Curiosamente, agora que as suas preces foram finalmente atendidas e o caminho mais fácil se perfila à sua frente, a resposta da Estrudes tem tardado a ser dada. Não estás cansada de enfrentar o mundo inteiro sozinha, três anos já não te chegam? Por quanto tempo vais tu conseguir criá-los assim, não seria melhor se? Estas palavras são da sua mãe, são de si própria nas noites que já conhecemos, e a resposta parece óbvia. Mas estranhamente, o desespero parece encontrar na figura deste homem novos meios para se agigantar ainda mais dentro dela. Nos últimos tempos, e a cada regresso a casa sem trabalho, a possibilidade do casamento foi ganhando diferentes contornos. A cada dia que passa, parece ser a única forma possível de continuar a dar alimento aos filhos. Mais do que o caminho para uma nova vida, esta proposta é uma questão de sobrevivência.
Este caminho será certamente o mais fácil, mas onde está, que é feito do perfume da rosa, por que motivo não se faz ele sentir? Em tudo isto pensa a Estrudes de noite. No dia seguinte, cada vez mais cedo porque é preciso ir cada vez mais longe, nova tentativa para encontrar trabalho, que o desespero ainda não reina, embora falte pouco.
Foi com todo este peso que saiu de casa hoje de manhã. Nunca a Estrudes fez tanto jus ao seu nome. Curvada perante o inevitável, há vários dias que já entendeu como é inútil esta busca pelo trabalho que não há. Mesmo assim voltou a sair, levou o seu desespero a passear, quanto à esperança, já há mais de uma semana que desistiu de a acompanhar. Cada vez mais próxima de uma decisão que dará alimento aos seus filhos, como que por castigo a lembrança do marido morto tem-se tornado cada vez mais forte e acompanha-a sempre no seu caminho. Calcorreou os lugares, bateu a todas as portas. Já nem se sentia reagir quando a resposta vinha, sempre a mesma, sempre igual. E tal era o seu estado de resignação que nem se deu conta, ao princípio, quando por uma única vez a resposta não foi a mesma de sempre. Hoje, no dia em que a vemos, a Estrudes arranjou trabalho.
Quem a vir agora a subir a estrada, direita a casa, vê uma mulher precocemente velha dobrada pelo peso da trouxa de roupa que trouxe para lavar. Mas quem como nós teve o privilégio de a poder acompanhar, sabe bem que a Estrudes trouxe um fardo de roupa pesado mas deixou ficar para trás outros tantos fardos que lhe pesavam muito mais.
O trabalho que, de forma indiferente, aquela outra mulher lhe pôs nos braços, devolveu à Estrudes o nome que lhe andava a faltar. Esta Estrudes que aqui vai hoje leva a cabeça erguida e mais firmeza no andar, está inteira, é a Estrudes Luísa. Não é Luísa por ser fina ou rica, isso nunca poderá vir a ser. É Luísa porque é dona de si própria, leva consigo a dignidade de quem se sustenta a trabalhar. Esta Estrudes Luísa desprezou o caminho mais fácil. Encarou o mais difícil e teve a coragem de perceber que só este lhe convinha. Que só por aquele caminho poderia continuar a trazer os seus dois nomes consigo. E que lhe assentam na perfeição, façamos a justa vénia a quem a baptizou.
Ali vai ela direita a casa, com o trabalho que foi possível encontrar hoje, melhores dias virão, piores dias virão. Hoje e até que morra, não haverá outra forma de levar a vida. A sua decisão só pode ser uma, e por incrível que pareça no meio de tanto calor, parece levantar-se uma brisa com um ligeiro perfume de rosas.
O pedido de casamento foi recusado naquele mesmo dia, para todo o sempre.
domingo, junho 03, 2012
Considerações de uma mulher de meia-idade que foi ao Rock in Rio
- Afinal ir ao Rock in Rio é mais ou menos como ir à praia: a malta faz umas sandes, compra sumos de pacote e mete o protector solar na mochila.
- Afinal estar no Rock in Rio é mais ou menos como estar no parque de campismo: há fila para comer; fila para fazer xixi; fila para tomar café.
- Afinal estar no Rock in Rio é tomar consciência da moda deste ano adoptada pelas adolescentes no que toca a vestuário. Alguém já se apercebeu? Eu só dei conta naquele dia, parecia que andavam todas fardadas. Calções (muito) curtos, de cintura subida. Vestidos por cima de collants (!), vulgo meias de vidro, indiferentes à temperatura acima dos 30 graus. É claro que usados de forma generalizada (pois se é moda), tanto pelas que saem favorecidas, como por aquelas que ficam um total desastre com aquilo vestido. Sendo que, depois de umas horas espojadas pelo meio do chão, não há collants que resistam e é ver malhas pelas pernas abaixo, deixando-as a todas com um aspecto mais ou menos igual, com um certo ar de prostituta gasta por muitos anos de profissão, o que de certa forma é a democratização do mau aspecto. É a justiça feita às gordas que nunca deviam ter optado pelos calçõezinhos logo de início e justiça feita a mim, que na idade delas também teria andado com uns vestidos, sem que o meu corpinho mo permitisse.
- Afinal o que é que se passa com as tampas das garrafas de água, pá? Deixem estar que para a próxima já não me apanham com esta. A vantagem de não vestir calções curtos é a quantidade de sítios onde imagino ser possível esconder tampas de garrafas de água, seus palermas...
- Afinal o que realmente vale a pena no Rock in Rio são mesmo os concertos. Não fosse pela experiência avassaladora de ver e ouvir os artistas do nosso coração, se calhar nalguns casos em oportunidades únicas, aquilo não seria mais do que uma concentração excessiva de pessoas e de hormonas de reprodução num espaço limitado, ainda por cima cheio de pó e de mershandising.
Mas assim, com a alma cheia de música, mal posso esperar pelo cartaz de daqui a dois anos, para decidir em que dia vou outra vez.
- Afinal estar no Rock in Rio é mais ou menos como estar no parque de campismo: há fila para comer; fila para fazer xixi; fila para tomar café.
- Afinal estar no Rock in Rio é tomar consciência da moda deste ano adoptada pelas adolescentes no que toca a vestuário. Alguém já se apercebeu? Eu só dei conta naquele dia, parecia que andavam todas fardadas. Calções (muito) curtos, de cintura subida. Vestidos por cima de collants (!), vulgo meias de vidro, indiferentes à temperatura acima dos 30 graus. É claro que usados de forma generalizada (pois se é moda), tanto pelas que saem favorecidas, como por aquelas que ficam um total desastre com aquilo vestido. Sendo que, depois de umas horas espojadas pelo meio do chão, não há collants que resistam e é ver malhas pelas pernas abaixo, deixando-as a todas com um aspecto mais ou menos igual, com um certo ar de prostituta gasta por muitos anos de profissão, o que de certa forma é a democratização do mau aspecto. É a justiça feita às gordas que nunca deviam ter optado pelos calçõezinhos logo de início e justiça feita a mim, que na idade delas também teria andado com uns vestidos, sem que o meu corpinho mo permitisse.
- Afinal o que é que se passa com as tampas das garrafas de água, pá? Deixem estar que para a próxima já não me apanham com esta. A vantagem de não vestir calções curtos é a quantidade de sítios onde imagino ser possível esconder tampas de garrafas de água, seus palermas...
- Afinal o que realmente vale a pena no Rock in Rio são mesmo os concertos. Não fosse pela experiência avassaladora de ver e ouvir os artistas do nosso coração, se calhar nalguns casos em oportunidades únicas, aquilo não seria mais do que uma concentração excessiva de pessoas e de hormonas de reprodução num espaço limitado, ainda por cima cheio de pó e de mershandising.
Mas assim, com a alma cheia de música, mal posso esperar pelo cartaz de daqui a dois anos, para decidir em que dia vou outra vez.
sexta-feira, maio 25, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #11
Homem, depoimento
Depois de tudo o que aconteceu tive que me habituar a conviver com a dor de a ter deixado partir. Não é suposto desvanecerem-se as memórias com o passar do tempo? Pois comigo dá-se o contrário. Recordo cada vez melhor, de forma mais nítida, cada conversa, cada riso, cada beijo. Consigo reconstituir de cor dias inteiros que passámos juntos, como se assistisse a um filme. Depois as saudades são tão intensas que o meu único desejo é que ela se vá embora de vez, que abandone também as minhas memórias. Sinto-me enlouquecer. Dizem-me para esquecer, que ela não é real, nem nunca o foi. Ou então dizem-me que ela morreu, o que é claramente um contra senso, se nunca existiu não pode ter morrido.
A explicação oficial considerou-me a primeira vítima do “efeito corrosivo de uma psicopata com capacidade para hipnotizar multidões, uma criminosa que sucumbiu pelas próprias mãos encerrando da forma mais terrível todo um ciclo de violência e morte”. E depois todos se empenharam no esquecimento, porque aquilo que não é lembrado não existe. Nenhum corpo foi alguma vez encontrado, mas sobre isso, nem uma palavra. Nem uma referência aos milhares de pessoas que encontraram naqueles concertos a felicidade, o prazer, a alegria, o amor, a amizade. Também não me parece justo, ela fez bem a muita gente… Mas também isso foi esquecido. E no entanto, como é que alguém, ou algo, que não existe, deixa uma dor tão real como aquela que sinto? Uma dor que parece ser imortal. Ninguém compreende que para mim isto não pode ficar assim. Eva Nascente existiu, existe ainda, tem que existir, porque se não for assim, então estive sempre sozinho.
Quanto mais olho à minha volta menos me identifico com este mundo que sempre foi o meu. A minha essência já não parece ser a mesma. Não é do mundo da lógica, das certezas, da realidade empírica e das experiências científicas esta sensação de que ela não chegou a ir-se embora, de que a sua presença ainda se faz sentir. A mecânica quântica não explica mas não é menos verdadeira por isso, esta ligação entre dois mundos, que teimosamente persiste e resiste a todas as adversidades, até ao próprio tempo. Já não falo destas coisas a ninguém, sempre que o faço vejo crescer nos olhos dos outros a convicção de que estou louco. Louco ou não, vou-me redimindo dos meus erros escrevendo as letras para as canções que poderíamos compor juntos se a história tivesse sido outra. Nestas novas canções já não falo de traição ou de mágoa. Apenas digo, Eva, sei que existes, só existindo podes cantar como cantas. É verdade, quase me esquecia de mencionar este pormenor, meio delirante. É que a oiço cantar com cada vez mais frequência e não duvido, nem por um instante, que é ela a cantar só para mim. Sinto que mudei, já não sou o mesmo. Pressinto que alguma coisa boa está ainda por suceder. E desta vez não vou ter medo de me deixar encantar.
Fim de publicação
terça-feira, maio 22, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #10
Eva Nascente, depoimento
Os humanos falam às vezes da Fénix, a ave mitológica que nasce das próprias cinzas e que, é claro, não existe. Será assim tão difícil aos homens entenderem que todos eles, em cada dia, a cada momento, nascem de novo, que não há apenas uma vida ou uma morte na vida mas várias, que sobre as cinzas de um fim se está constantemente nascendo de novo? Que a Fénix existe em cada um de nós? Foi isso que se passou comigo, afinal. Vi os meus planos caírem por terra e o meu amor ser desprezado. Vi desabar o mundo que criei. Vi esgotarem-se a curiosidade, a euforia, o deslumbramento, a paixão, a esperança, a teimosia, a ilusão. Fui até onde podia ir, até que fiquei sem forças. E nessa altura precisei de recuperar a minha essência, aquela de que julguei não precisar mais. Abandonar o mundo dos homens foi a melhor coisa, a única coisa a fazer. A esse gesto os homens chamaram de morte, eu insisto em chamar-lhe renascimento. Precisei de regressar ao que sempre fui e serei, para novamente me afirmar Eva Nascente. Não sou de facto a mesma que se juntou a um grupo de músicos, por amor à aventura, por amor. Sou outra, porque noutra me tornei em resultado de todas as vivências e sentimentos. Outra, recomeçada sobre as cinzas de mim, porém a mesma, porém outra. As diferenças são fáceis de encontrar. Olho mas o meu modo de olhar é diferente, acredito, mas já não acredito no mesmo, ignoro muita coisa, mas já não posso ignorar de novo aquilo que passei a saber. No fundo, acho que é a isto que os homens chamam de “pecado original”.
E no entanto, algumas coisas parecem teimar
Próxima (e última) publicação: 25 de Maio
quinta-feira, maio 17, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #9
Homem, depoimento
O desaparecimento dela foi ainda mais insólito que o aparecimento. Não sei explicar para além do que vi acontecer, foi precisamente no último concerto da digressão. Da parte dela não houve um sinal, um olhar, um sorriso. Não houve nada, aliás, a partir de certa altura a Eva pareceu desistir de mim, e a mim pareceu-me que isso me agradava. Naquela noite como em tantas outras estava apenas concentrado no espectáculo, contente porque depois daquele concerto podia dissolver a banda e esquecer tudo. Cumprindo o alinhamento, fiz soar os acordes de um dos nossos maiores êxitos. Aquela canção já tinha alguma má fama, porque era tão potente, tão brutal, que quase sempre os maiores excessos do público aconteciam nesta fase da actuação. E assim foi novamente. Os seguranças entre o palco e as grades pareciam frágeis para a enorme massa humana que se agitava em frente a nós. Noutros concertos, por várias vezes tinha sentido medo enquanto tocávamos aquele tema, mas naquela noite o medo dissipou-se. Eva parecia maior do que era na realidade, parecia elevar-se sobre o público enquanto cantava, o seu domínio era total. Perto do final da música juro que os seus pés se ergueram do chão, os braços abertos como se abraçasse todo o público. Todos sentimos que alguma coisa estava para acontecer. Parámos de tocar mas ela continuou a cantar. E sem qualquer hesitação, Eva lançou-se em voo sobre a assistência, a minha Eva Nascente, como gostava de se denominar, mergulhou naquela confusão de pernas, braços e rostos, naquela enorme massa humana, disforme por conta das emoções, dos encantamentos, da música. Deixou-se cair bem no fundo de todos eles, para longe de mim, para não voltar mais. No meio do caos que se seguiu, enquanto polícias e membros da equipa lutavam desesperados para afastar o público do local onde ela tinha mergulhado, deixei-me ficar sozinho em cima do palco, ouvindo apenas o silêncio que naquela hora se abateu no fundo de mim. Calaram-se a cólera, a revolta, o orgulho, a incompreensão. Soube desde logo, com toda a segurança, que podiam passar o recinto a pente fino, jamais a encontrariam. Estava perdida para sempre, e eu estava sozinho.
Próxima publicação: 22 de Maio
terça-feira, maio 15, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #8
Eva Nascente, depoimento
A minha maior ilusão foi acreditar na existência de um lugar, um tempo, em que pudéssemos estar juntos. Por isso me mantive ao seu lado, esperando que todo aquele ressentimento e preconceito cedessem, mais tarde ou mais cedo, ao amor que ainda existia. Quem disse que não há magia no mundo dos humanos? Querem maior encantamento do que a esperança? Deixei-me dominar por esse encantamento, e ingenuamente comecei a tentar convencê-lo a partir comigo. Afinal, se eu me tornara um pouco mais humana, porque não poderia ele ser um pouco mais… mágico? Como desejei então ter todo o poder que os homens atribuem às fadas! Conseguir mudar, por força da magia e para o bem dos dois, o seu modo de pensar, agir, sentir. Mas depressa me desiludi. A todas as minhas propostas de começarmos do zero algures onde nós próprios fôssemos mais importantes do que as nossas diferenças, ele respondia-me com palavras amargas, cheias de escuridão. Ou então fazia pior, não me olhava de frente, oferecia-me o mais frio dos desprezos, gelava-me por dentro. Entendi que mais uma vez procurava sucesso numa missão impossível. Afinal, se ao longo de todo este caminho eu nunca pude modificar a minha própria essência, como poderia ser capaz de modificar a dele? Ele optou por duvidar da minha existência. A mim só me restou duvidar do seu amor. E dando esse amor por inexistente, já nada mais havia para mim no mundo dos homens. Tudo o que restou fui eu própria, ainda que perdida no meio de muitas ilusões. O cansaço tomou conta de mim e apenas uma ideia começou a orientar-me: regressar a casa.
Próxima publicação: 17 de Maio
quinta-feira, maio 10, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #7
Homem, depoimento
Realmente vivemos num mundo estranho. Enredamo-nos tanto nos nossos compromissos que eles ganham mais importância que a nossa própria vontade, impondo-se sem direito a contestação sobre as necessidades mais básicas, humildemente suplicadas pelos nossos corações. Só por isso se explica que, mesmo depois de tudo o que descobri e decidi, não tivesse dissolvido a banda de imediato. A verdade é que, mesmo com todos os problemas que surgiam, não podíamos cancelar os concertos. Também por conta destes problemas, a banda estava no auge do sucesso e havia contratos a cumprir.
Continuámos a tocar, mas as actuações eram cada vez mais curtas porque se tornava impossível controlar a multidão. O meu afastamento dela também se reflectiu na música e da pior forma possível. Eu ficava furioso, acreditava piamente que ela fazia de propósito para deprimir as pessoas. Eva cantava com uma melancolia na voz que nos trespassava os ossos. Vi muitas vezes os músicos a chorar enquanto tocavam, mesmo no meio das músicas mais agitadas, e sem conseguirem compreender porquê. As reacções do público também se alteraram, e se por um lado diminuíram os desacatos e tentativas de assassinato, a taxa de suicídios durante e depois dos concertos começou a aumentar de forma assustadora. Em consequência disso surgiram aquelas organizações de pais, que reclamavam pelo nosso silêncio total enquanto músicos. Nem que para isso tivessem que nos matar...
Por essa altura, vários jornalistas, comentadores, apresentadores de televisão, despertaram para a mesma pergunta que eu próprio tinha feito: quem é esta Eva, de onde surgiu? É claro que não posso afirmar isto como verdade rigorosa, mas sempre suspeitei que a minha descoberta da verdade se assemelhou à bola de neve que cai do cimo do penhasco. Vem rebolando por aí abaixo, recrutando outras iguais a ela, e tornando-se cada vez maior. Fui apenas o primeiro a fazer a pergunta, e ao fazê-la quebrei o encanto que abriu outros olhos. Começaram a surgir más referências à nossa banda um pouco por toda a imprensa. As críticas nos jornais e revistas, de apoteóticas passaram a demolidoras. Acredito que alguns desses críticos tenham ficado desencantados, tal como eu. Outros, se calhar, pura e simplesmente eram feitos de uma matéria que não se deixava encantar, e apenas permaneciam calados à espera do momento oportuno para se fazerem ouvir. Da Eva disseram-se coisas terríveis. A sua beleza, que em boa verdade sempre foi impossível de contestar, passou a ser escamoteada em todas as revistas. Aliás, foi numa dessas revistas cor-de-rosa que primeiro surgiu aquele comentário venenoso, em letras pequeninas, ilustrando uma foto: “parece uma bruxinha”. Aquela legenda, não sei como, tornou-se na ideia dominante, e logo foi veiculada a ideia de que aqueles olhos doces eram apenas a máscara que escondia todo o mal. Juro que nunca a denunciei, esse peso não carrego na minha consciência. Mas identificava-me totalmente com tudo o que dissesse mal dela, mesmo que com isso também eu e a banda surgíssemos prejudicados. Tinha um prazer sórdido em mostrar-lhe todas as críticas e às vezes inventava outras, ainda mais ofensivas. Menti dizendo-lhe que já não a amava, agora que sabia a verdade. Que as suas mentiras estavam à vista de todos. Que todo o seu mundo era uma fraude que não existe e nunca existiu. Mascarei assim o que sentia, defendi-me como podia, não dela, que jamais me quis fazer mal, mas da dor mais destruidora de todas, a de nos sentirmos traídos por quem amamos.
Próxima publicação: 15 de Maio
terça-feira, maio 08, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #6
Homem, depoimento
A cada pergunta minha surgiram verdades que me esmagaram. À medida que me dava conta do seu mundo de encantamentos e magia, eu pelo contrário descia cada vez mais à terra e compreendia como a nossa história era impossível. Não tenho dúvidas hoje em dia que começou naquela conversa o fim do seu encantamento sobre todos nós. Quanto a mim, descobrir a verdade foi revoltar-me com ela. Continuo a não saber dizer quem, ou o que é ela realmente. Apenas lamento que não tenha conseguido deixar-me estar como estava, sem ter que a encerrar numa definição. Mas não fui capaz, afinal sou apenas humano. Precisei ali mesmo de encontrar um nome para lhe chamar, ou fada ou bruxa, e bruxa foi a minha escolha. Decidi naquele momento que o que sentia não era amor, mas feitiço. E assim com tudo explicado e devidamente encaixado nos seus lugares, apenas quis parar de sofrer. Encerrei a discussão dizendo-lhe o pior de tudo, já não existes para mim.
Eva Nascente, depoimento
A rejeição ditou o fim do meu encantamento. Não aquele que se soltava durante os concertos, porque esse, como já expliquei, foi involuntário, imprevisível, diferente conforme os corações que o recebiam. Refiro-me ao encantamento em que eu própria andei envolvida, esquecendo-me da minha essência e julgando poder assim viver feliz. Não se pode nunca renegar a matéria de que somos feitos, foi essa a lição que tirei a duras penas. E no entanto, um dos meus desejos continuava a ser satisfeito: o de aprender a ser humana. Neste meu aprendizado pude então conhecer o outro lado desta forma de existência, pela mão do mesmo homem que me dera a conhecer o amor. Em vez de paixão, desprezo. Em vez de comunhão, solidão. Pela primeira vez em muito tempo recordei o mundo que é o meu com saudade, outro sentimento que aprendi a conhecer. O problema é que também nesse mundo me sentia agora uma estranha. Ficou então claro para mim que pelos meus próprios passos me tornara numa estranha entre ambos os mundos.
Próxima publicação: 10 de Maio
quinta-feira, maio 03, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #5
Homem, depoimento
Os nossos concertos tornaram-se cada vez mais policiados, numa tentativa às vezes vã de controlar o incontrolável. Chegava a ser cómico, dir-se-ia que havia tantos polícias quanto espectadores. O bizarro é que, muitas vezes, os próprios agentes se deixavam contagiar por aqueles fenómenos de histeria colectiva, e com a agravante de estarem armados. Foi muito bem abafado aquele episódio do polícia que atingiu a tiro vários casais de espectadores, apenas porque estavam a beijar-se. Outra coisa que me incomodava um pouco é que o resto da banda parecia divertir-se, não se deixando impressionar com as tragédias que por vezes aconteciam entre a assistência. O nosso baterista deixou de consumir droga antes dos concertos. Também deixou de se embebedar a seguir. Dizia que já não precisava, a música que tocávamos era suficiente. A Eva estava cada dia mais resplandecente, uma verdadeira deusa, especialmente quando sorria para mim. Era quase sempre impossível não me perder nesse sorriso, deixar-me levar pela onda de bem-estar que ela me provocava.
Mas tornou-se impossível permanecer de olhos e ouvidos fechados, quando chegavam cada vez mais informações sobre gente que morria no meio daquele caos. Surgiram os primeiros concertos cancelados, e as sombras começaram a tomar conta do nosso paraíso. Mesmo assim precisei de tempo para lhe fazer directamente a pergunta que me consumiu durante algum tempo, quem és tu afinal. Está enganado quem pensa que precisei de ganhar coragem para perguntar. Tal como alguém já disse em tempos, do que eu precisei foi de coragem para ouvir a resposta.
Eva Nascente, depoimento
Perguntou-me quem eu sou, pergunta mais simples parece não haver, se bem que mesmo os homens nunca têm apenas uma resposta para ela. Respondi-lhe com a verdade. Sou uma das muitas realidades deste mundo, sou a vontade de ser mais do que aquilo que estou destinada a ser, sou o desejo de aprender, sou a mulher que nasceu do teu amor, aquela que acordaste por dentro, aquela que te acordou por dentro, sou a tua inspiração. Sou corpo e espírito, tal como tu. Mas o meu corpo e espírito é feito do que julgas não existir, e te habituaste a ver apenas em sonhos, e a chamar-me fada, ou bruxa, feiticeira, duende, extra-terrestre. A minha verdade é esta, foi esta que lhe entreguei. E também eu perguntei: homem, qual vai ser a tua verdade? No que é que te vais tornar, agora que sabes quem sou?
Senti o abismo que se abria entre nós à medida que as minhas respostas apenas geravam mais interrogações. Percebi então o quanto estava longe da existência humana, que julgava ter alcançado tão facilmente. Afinal, os nossos sentimentos eram a base que sustentava uma realidade tão frágil que a qualquer momento poderia desfazer-se. Tive medo, senti o chão a fugir-me dos pés. Se também ele, como a maior parte dos homens, concluísse que eu não existo, como poderia eu, de facto, existir.
Próxima publicação: 8 de Maio
quinta-feira, abril 26, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #4
Eva Nascente, depoimento
A verdade é uma coisa que não se sabe em que mundo habita, sabe-se apenas que ninguém é dono dela. Também eu não a possuo. A música que criámos foi o resultado de nós dois e feita com todo o amor que tínhamos um pelo outro. Na essência dessas músicas podemos encontrá-lo a ele com o seu imenso talento, e encontro-me eu com a minha magia. A essência de qualquer um de nós manifesta-se sempre, não há como evitá-lo, eu não sou excepção. Mas a nossa história é de excepção, e assim se tornou também a música que criámos. Como poderíamos saber, ele ou eu, o que viria depois? Quando começámos a compor juntos surgiu a música que nunca antes se tinha feito. É sempre assim com aquilo que decidimos fazer ou ser em cada momento, é impossível prever que mundo novo vai surgir. Criámos uma nova realidade que trouxe as suas consequências. O que aconteceu nos concertos é na verdade muito simples de explicar. A música soltou a magia que está na minha essência, que voou sobre as cabeças, inundou os espíritos. Era um encantamento, sim, mas não o será toda a música, independentemente de quem a faça nascer? E não podemos esquecer o amor que nos unia. Estávamos de tal modo encantados um pelo outro que cada actuação em palco era o equivalente ao sexo que marcava os nossos momentos de intimidade. A nossa música reflectiu também aquilo em que nos tornámos quando nos perdermos de amor um pelo outro. Dir-se-ia então que um encantamento como este só poderia despertar o bem, nunca o mal, e no entanto vimos pessoas a reagirem de formas muito más… Pois bem, assim como se diz que cada cabeça a sua sentença, eu passei a acreditar que também é assim com a magia. O mesmo encantamento não resulta igual em duas pessoas. Depende do que encontra quando lá chega, o encantamento, à pessoa. Não há bons ou maus encantamentos, magia branca ou magia negra. A magia que chegou a cada um fez o efeito conforme a essência dos corações. Para uns despertou a alegria, para outros a amizade, o amor, a libido, e para outros ainda, o ódio, a violência, a inveja, a tristeza. O que faz a diferença não é a magia, é a essência de cada um. Não fosse eu a Eva que sou, não fosse ele o homem que é, esta história não teria existido, mas outra.
Próxima publicação: 3 de Maio
quinta-feira, abril 19, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #3
Homem, depoimento
A banda ganhava cada vez mais sucesso. Embora as músicas fossem as mesmas de sempre, a voz da Eva dava-lhes uma nova alma. Bem sei que qualquer um que suba a um palco passa por uma transformação. Deixamos de ser nós próprios, vestimos um personagem, brilhamos como deuses vindos de outro mundo. Um brilho que na verdade não é mais do que o olhar dos comuns mortais que nos cercam, e assim nos consideram seres de outro mundo. À nossa dimensão também já tínhamos essa experiência. Mas mesmo assim, desde logo percebemos que com a Eva passava-se algo de diferente. O que era estranho e fascinante ao mesmo tempo, é que também nós, em cima do palco, acabávamos reduzidos ao mesmo olhar de admiração do nosso público. Parece um lugar comum dizer que os olhos dela brilhavam, que o cabelo dela esvoaçava, que às vezes parecia levitar. São comentários possíveis de fazer sobre qualquer cantor em qualquer concerto. Mas ela era… simplesmente deslumbrante. Rapidamente se tornou num fenómeno de popularidade. Os concertos tinham cada vez mais gente, uma legião de fãs fascinados, dirão uns, apaixonados, dirão outros, hipnotizados, embruxados…
Mas as coisas verdadeiramente estranhas, só começaram a acontecer depois de eu e ela compormos
Havia depois a outra face desta moeda, havia os outros. Que incendiavam os cabelos do vizinho da frente. Que se lançavam à pancada sem qualquer motivo. Que choravam e desesperavam, que tentavam o suicídio. O assassínio. Meia hora de concerto era o suficiente para ver surgir entre a assistência, de forma descontrolada, o espectáculo de todas as emoções humanas, das melhores às piores. Era o caos. Os relatos das primeiras mortes foram para mim o fim do estado de graça. Foi nessa altura que comecei a ver para além da paixão, que tinha tomado conta de mim a ponto de pensar que não precisava de mais nada na vida. O que se passava de tão diferente nos nossos concertos? Era apenas música, porque é que sucediam tantas coisas estranhas? A estas perguntas seguiu-se outra, sorrateira, uma pergunta que já se impunha desde o primeiro dia: quem era Eva, de onde tinha vindo?
Próxima publicação: 26 de Abril
quinta-feira, abril 12, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #2
Homem, depoimento
O que se passou a seguir é muito fácil de descrever: não houve tempos mais felizes. Quando evoco essa época sinto um torpor de contentamento que ainda hoje me sustenta. A Eva entrou nas nossas vidas, na nossa banda, na minha cama, no meu coração. Cantava tão bem, foi apenas natural colocá-la como vocalista. As nossas canções ganharam outra alma, o público adorava-a. Todos a adorávamos. Era como se qualquer pessoa que a conhecesse ficasse irremediavelmente apaixonada por ela.
Eva Nascente, depoimento
Jamais imaginei que fosse assim. Vivi aqueles primeiros tempos com a sofreguidão de um recém-nascido. E no fundo foi isso mesmo que me aconteceu, eu que nunca nasci e jamais morrerei, pude com a minha decisão de me juntar aos homens ter essa experiência, a do nascimento. Foi por isso que atribuí a mim própria um novo nome: se antes era Eva sem ter nascido, depois de nascer tornei-me Eva Nascente. Eva Nascida? É claro que não. Eu, assim como todos os homens, depois de nascer uma vez nunca mais deixei de o fazer. Nascente, como a nascente dos rios, porque uma das coisas que descobri é que, a cada nova experiência vivida, nascemos daquilo que somos para ser aquilo em que nos tornamos.
Nesta minha condição pude experimentar sentimentos até então desconhecidos. A paixão. A alegria. O desejo. O amor. A angústia. A decepção. A lucidez. Quis e acreditei que eu também podia pertencer à espécie humana. Andava tão encantada nesta minha nova vida, que me parecia ser nada o que antes eu era. Olhava para o meu passado e parecia-me ter antes vivido num mundo de sonho, um sonho do qual tinha agora despertado, regressando finalmente à vida real. Olhava para o meu amor e via nele a razão de ser de tudo, o grande responsável por trazer à luz do dia tudo o que em mim se encontrava adormecido. Foi por isso coisa natural querer ajudá-lo no que pudesse fazê-lo feliz. Os homens não vêem bem certas coisas, nem mesmo usando óculos, mas eu entendi muito bem que quando ele sobe ao palco, a sua essência surge em todo o seu esplendor. Tocar e cantar, receber a admiração, os aplausos e a alegria de quem o ouve, em conjunto com os seus companheiros, eis como se consuma a sua existência. Quis ajudá-los neste processo de tornar essência em existência, contribuir para aquilo que o torna tão feliz. E convenci-me de que também eu tinha encontrado a felicidade eterna, acreditei sinceramente que era humana. Só que, no meu desejo de concretizar a essência dele, esqueci-me da minha, e humana não sou. Foi esse o meu erro. Não me arrependo de nada, mas reconheço que de todos os sentimentos humanos que pude experimentar, nem todos consegui suportar. Só mesmo um ser humano para ser esmagado pela dor, sofrimento, ódio, e mesmo assim, continuar vivo.
Próxima publicação: 19 de Abril
quinta-feira, abril 05, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora. #1
Homem, depoimento
Entrámos por aquela estrada porque pensámos em cortar caminho e ganhar tempo. Não esperávamos que mais à frente ela quase desaparecesse, ficando pouco mais do que um carreiro no meio da vegetação. Muito rapidamente ficámos perdidos, e uma floresta que nunca antes tínhamos notado, praticamente decidiu engolir-nos. Como um azar nunca vem só, a gasolina faltou e nesse dia não conseguimos chegar a tempo de fazer o concerto. Enquanto um de nós, já não me lembro qual, foi à procura de um posto de combustível, ficaram os outros a tomar conta dos instrumentos. Nessa altura ainda era pouca coisa mas era tudo nosso. Agora que penso nisso não era bem assim, a bateria ainda não estava toda paga. Na verdade, tínhamos mais inspiração do que dinheiro. Mesmo assim já tínhamos gravado um disco, tocávamos todos os fins-de-semana, e embora muitos olhares objectivos nos dissessem o quanto este projecto era inviável, tínhamos empenhado o nosso dinheiro, o nosso tempo, toda a nossa alma para viver apenas da música que criássemos. Sentíamo-nos autênticas estrelas. Não interessa se éramos os únicos a achar isso, andávamos felizes assim.
Mas nada disto nos poupou a ficar horas e horas à espera da gasolina. Para passar o tempo resolvi tocar guitarra. E foi logo de seguida que a Eva apareceu. Ela própria afirmou que tinha vindo atraída pela música, quanto a nós, acho que ficámos desde logo atraídos por ela. Eu especialmente. Sentou-se ao pé de mim e começou a cantar. Todos sabem hoje em dia a voz maravilhosa que ela tem, ou pelo menos deveriam fazer um esforço por se recordarem. Mas aqueles primeiros instantes foram especiais, porque ela cantou só para nós. Parecia que até o ar se tinha aquietado para que ela se pudesse ouvir melhor, foi um momento… mágico. Quando o nosso companheiro voltou com a gasolina e pudemos seguir viagem, ela acompanhou-nos com a mesma naturalidade com que tinha surgido dos arbustos. É um pouco bizarro contado assim, mas de facto nunca ocorreu, a nenhum de nós, perguntar-lhe de onde vinha, o que fazia, o que pretendia. Embruxados? Enfeitiçados? A isso não sei responder. A quem interessar saber como começou, aqui está a realidade, tal qual aconteceu.
Eva Nascente, depoimento
A explicação é muito simples, quis saber como era do outro lado. A vontade de conhecer outros mundos não pertence só aos homens. Este mundo que é o meu já não tinha segredos para mim, o mundo dos homens tinha tudo por desvendar. Acusam-me de os ter atraído para mim mas isso não é verdade. Foi ele, com a música que tocava, que me retirou desde logo todas as forças para resistir. A primeira a ser enfeitiçada fui eu. Sempre me ensinaram que a minha espécie e a dos homens não pode co-existir, que vivemos em dois mundos opostos, mas ao som da música parece-me claro que existe pelo menos esse ponto
O mundo dos homens tornou-se ainda mais fascinante por causa daquele homem em particular, é um facto que não pretendo negar. Por causa disso mesmo, e apesar das adversidades, fui duplamente abençoada. Naquele dia abriram-se-me as portas de dois mundos: uma para o mundo dos homens que tanto queria conhecer; outra para uma forma de emoção que até então jamais sentira. Nunca foi minha intenção provocar qualquer mal. E em minha defesa o afirmo, foi sobre mim que se abateu o maior dos sofrimentos.
Próxima publicação: 12 de Abril
segunda-feira, abril 02, 2012
Eva Nascente. Um conto com banda sonora #Prólogo
Primeiro aviso à navegação: Resolvidas que estão as questões da propriedade intelectual deste sítio, irei nos próximos tempos publicar alguns contos, na gaveta desde 2005-2006, período em que praticamente todos foram escritos ou finalizados. Chamo-lhes contos porque em termos formais é com isso que se parecem. Já a pensar em publicá-los aqui, obriguei-me recentemente a relê-los e a conclusão a que chego não é muito diferente daquela a que cheguei em outros momentos. São o que são, nem especialmente brilhantes nem especialmente maus, mas são meus. E já que nunca foram impressos em papel, pois que chegue enfim a sua hora de serem apresentados aqui, para leitura daqueles que para isso tiverem disponibilidade, interesse e paciência.
Segundo aviso à navegação: Não percebo nada de música. Nada mesmo. A música de que gosto é sempre porque sim, estou completamente à margem de gostos mais requintados e elitistas em matéria musical. A música clássica aborrece-me (excepto as quatro estações do Vivaldi e o requiem do Mozart. Porquê? Não sei. Porque sim). O jazz para mim é pior ainda, acciona um botão que deve existir algures num dos meus lobos temporais e que me desliga o cérebro, deixando-me a navegar em pensamentos que variam entre a roupa que está para passar a ferro, a necessidade de aproveitar a hora de almoço do dia seguinte para ir à depilação e, quando muito, uma concentração obssessiva pelos riscos que estão no soalho/parede/tecto ou outro sítio qualquer para onde esteja a lançar o meu olhar bovino. Dito isto, a verdade é que gosto de ouvir música e que me estou a borrifar se a dita é comercial ou não é. E portanto, não percebendo nada de música mas gostando de a ouvir e de a cantar, sou uma ouvinte inconstante e incoerente, que tanto gosta de pop como de rock, ou de música portuguesa (desde que não seja o André Sardet, pelamordedeus) e por aí fora. Gosto no fundo de qualquer coisa que calhe a tocar-me no coração, sem grandes preocupações de erudição e quem sabe, ande por aí a música jazz que consiga entrar sem desligar o botão. Ouviremos.
Adiante. Pode não parecer mas do que eu quero mesmo falar é de literatura. No meio disto tudo, a dado momento dei comigo a gostar muito de ouvir o álbum "Fallen", dos Evanescence e a descortinar no meio daquelas canções - e também dos videoclips, com uma imagem muito própria - uma história para se contar. O conto que construí a partir daquelas músicas é o que irei começar a publicar aqui durante esta semana e que será postado em 11 partes, tantas quantas as canções que integram o "Fallen". A cada parte corresponderá uma música do dito álbum. (E sim, eu sei que o José Luís Peixoto já fez uma coisa semelhante ou igual com os Moonspell. Não é o mesmo, nem pretende ser).
Último aviso à navegação: Depois de ter escrito este conto nunca mais ouvi os Evanescence, desconheço o que é que tocam hoje em dia e nem sabia que ainda existiam como banda, até esta notícia de que vinham ao Rock in Rio em Maio (já tinha avisado, eu no que toca à música, não tenho espinha dorsal).
De maneiras que é isto. Depois desta conversa toda era só para dizer que "Eva Nascente. Um conto com banda sonora" vai começar a ser postado na próxima 5.ª Feira, 5 de Abril, e terminá a 25 de Maio, data em que os Evanescence sobem ao palco do Rock in Rio.
Segundo aviso à navegação: Não percebo nada de música. Nada mesmo. A música de que gosto é sempre porque sim, estou completamente à margem de gostos mais requintados e elitistas em matéria musical. A música clássica aborrece-me (excepto as quatro estações do Vivaldi e o requiem do Mozart. Porquê? Não sei. Porque sim). O jazz para mim é pior ainda, acciona um botão que deve existir algures num dos meus lobos temporais e que me desliga o cérebro, deixando-me a navegar em pensamentos que variam entre a roupa que está para passar a ferro, a necessidade de aproveitar a hora de almoço do dia seguinte para ir à depilação e, quando muito, uma concentração obssessiva pelos riscos que estão no soalho/parede/tecto ou outro sítio qualquer para onde esteja a lançar o meu olhar bovino. Dito isto, a verdade é que gosto de ouvir música e que me estou a borrifar se a dita é comercial ou não é. E portanto, não percebendo nada de música mas gostando de a ouvir e de a cantar, sou uma ouvinte inconstante e incoerente, que tanto gosta de pop como de rock, ou de música portuguesa (desde que não seja o André Sardet, pelamordedeus) e por aí fora. Gosto no fundo de qualquer coisa que calhe a tocar-me no coração, sem grandes preocupações de erudição e quem sabe, ande por aí a música jazz que consiga entrar sem desligar o botão. Ouviremos.
Adiante. Pode não parecer mas do que eu quero mesmo falar é de literatura. No meio disto tudo, a dado momento dei comigo a gostar muito de ouvir o álbum "Fallen", dos Evanescence e a descortinar no meio daquelas canções - e também dos videoclips, com uma imagem muito própria - uma história para se contar. O conto que construí a partir daquelas músicas é o que irei começar a publicar aqui durante esta semana e que será postado em 11 partes, tantas quantas as canções que integram o "Fallen". A cada parte corresponderá uma música do dito álbum. (E sim, eu sei que o José Luís Peixoto já fez uma coisa semelhante ou igual com os Moonspell. Não é o mesmo, nem pretende ser).
Último aviso à navegação: Depois de ter escrito este conto nunca mais ouvi os Evanescence, desconheço o que é que tocam hoje em dia e nem sabia que ainda existiam como banda, até esta notícia de que vinham ao Rock in Rio em Maio (já tinha avisado, eu no que toca à música, não tenho espinha dorsal).
De maneiras que é isto. Depois desta conversa toda era só para dizer que "Eva Nascente. Um conto com banda sonora" vai começar a ser postado na próxima 5.ª Feira, 5 de Abril, e terminá a 25 de Maio, data em que os Evanescence sobem ao palco do Rock in Rio.
segunda-feira, março 12, 2012
Cais 14
Cais 14 é o nome do cais da vila de Alhandra. Foi também o título de um espectáculo que aconteceu este fim-de-semana naquela localidade, um projecto de teatro comunitário construído de raiz por quem nele participou. 111 pessoas, dos muito jovens aos muito idosos, numa onda positiva de vontades que todas juntas reavivaram memórias e identidades, histórias e personagens do imaginário de todos quantos ali têm levado as suas vidas, virados para o rio Tejo.
Os textos, tal como tudo o resto, foram construídos colectivamente. "Cada um de nós é um rio. Cada um de nós é um cais.", foi um pedaço que integrou um dos momentos do espectáculo, uma ideia que desenvolvi a partir da célebre citação de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."
Embora todo o texto seja talvez mais compreensível para quem esteve envolvido no projecto e conheça a terra, ainda assim deixo-o aqui na sua versão integral, mais que não seja porque, na sua conclusão final, podemos enquadrar a vida de qualquer um de nós:
CAIS 14
"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."
À beira deste Cais construíram-se as vidas de agricultores e pescadores, atletas e escritores, músicos, operários, homens que nunca foram meninos, mulheres que sempre tiveram força.
Todos aqui vieram em algum momento. Entraram nos barcos e lançaram as redes ao rio. Nadaram para vencer o medo, para vencer o frio, para vencer o rio. Vieram ao nascer do sol para lavar a roupa, chegaram ao fim do dia para chorar a dureza da vida. Vieram durante a noite para conversar, conspirar, rir, cantar e dançar, dormir. Amar.
A partir do Cais 14, os homens e as mulheres buscaram no rio o seu sustento, mas também a sua inspiração. Para isso invocavam as Tágides, que dizem ser as ninfas do Tejo. O alento dos mortais sempre pareceu mais fácil com a ajuda da divindade. E por isso elas existem, e são belas, e também elas gostam de se sentar no Cais 14 a contemplar o rio.
Cada um de nós é um rio.
Cada um de nós é um Cais.
Os textos, tal como tudo o resto, foram construídos colectivamente. "Cada um de nós é um rio. Cada um de nós é um cais.", foi um pedaço que integrou um dos momentos do espectáculo, uma ideia que desenvolvi a partir da célebre citação de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."
Embora todo o texto seja talvez mais compreensível para quem esteve envolvido no projecto e conheça a terra, ainda assim deixo-o aqui na sua versão integral, mais que não seja porque, na sua conclusão final, podemos enquadrar a vida de qualquer um de nós:
CAIS 14
"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem."
O Cais 14, em Alhandra, é a margem que comprime o Tejo e o empurra para o seu destino. Vivem assim enlaçados, o rio e o Cais, como se de um namoro se tratasse.
Este namoro entre o rio que tudo arrasta e o Cais que o comprime construiu a vida de muitas pessoas ao longo dos tempos.À beira deste Cais construíram-se as vidas de agricultores e pescadores, atletas e escritores, músicos, operários, homens que nunca foram meninos, mulheres que sempre tiveram força.
Todos aqui vieram em algum momento. Entraram nos barcos e lançaram as redes ao rio. Nadaram para vencer o medo, para vencer o frio, para vencer o rio. Vieram ao nascer do sol para lavar a roupa, chegaram ao fim do dia para chorar a dureza da vida. Vieram durante a noite para conversar, conspirar, rir, cantar e dançar, dormir. Amar.
A partir do Cais 14, os homens e as mulheres buscaram no rio o seu sustento, mas também a sua inspiração. Para isso invocavam as Tágides, que dizem ser as ninfas do Tejo. O alento dos mortais sempre pareceu mais fácil com a ajuda da divindade. E por isso elas existem, e são belas, e também elas gostam de se sentar no Cais 14 a contemplar o rio.
Mas de onde vem, afinal, a inspiração? De onde vem o talento? De onde vem o alento para levantar todos os dias e trabalhar, construir a própria vida? Será que vem do rio, será que vem das ninfas?
Na verdade, tudo o que se constrói nasce da vontade dos homens e das mulheres. São essas vontades que ditam o que chega ao Cais e o que abandona o Cais. Foram essas vontades que construíram, junto ao rio, a casa da Música, do Teatro, do Desporto, da História. E o que existe mais, para além das vontades? Existe o riso. A esperança. A perseverança. A solidariedade. A dança. O olhar. O beijo. De tudo isto se fazem as vidas que chegam e partem do Cais 14.
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as vidas que em torno dele se constroem. Cada um de nós é um rio.
Cada um de nós é um Cais.
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